Renata Teodoro Pereira

 DOS TRAJES DE CRIOULA AOS SÍMBOLOS DAS MULHERES NEGRAS: APRENDIZAGEM HISTÓRICA E MEMÓRIA (1990 - 2019)

 

Renata Teodoro Pereira

 

O projeto “Dos trajes de crioula aos símbolos das mulheres negras: Aprendizagem histórica e memória (1990 - 2019)” teve início em agosto de 2021, ainda com diversas análises preliminares. E visava investigar a formação e a apresentação da simbologia feminina negra em espaços não formais de aprendizagem, como os museus; analisar como são trabalhadas as representações de seus corpos, suas vestimentas, dos turbantes, das imagens, das coleções, dos saber-fazer pelo setor educativo de dois museus que são intitulados como afro brasileiros: o Museu Afro Brasil (SP) e o Museu Afro-brasileiro (UFBA) e conceber a fundamentação com as memórias, representações culturais de afro brasileiros em museus, tendo em vista a constituição de formação de identidades e alteridades a partir de coleções, objetos, exposições museológicas.


Para a pesquisa, partimos das discussões sobre espaços de memória, mulheres negras e o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em que se analisa as perspectivas rituais e estéticas e as identidades que são projetadas a partir das coleções e símbolos femininos nesses dois museus. Ou como afirma Joana Silva (2015) em seu estudo sobre a representação das mulheres negras em Salvador, nos evidenciando o quanto ainda necessitamos pesquisar sobre isso, pois segundo a autora:

“em sete museus pesquisados é perceptível que as mulheres negras têm seu lugar na exposição museológica como personagens coadjuvantes. A imagem da mulher negra é quase sempre alusiva à figura simbólica da mulher forte, cuidadora dos (as) frágeis e desprotegidos (as). (p. 99)”.   

Também para a autora, símbolos e registros de alguns espaços museológicos se pautam pelos homens e mulheres brancas, problematizar a representação das mulheres negras contribui para a emancipação cultural, pois:


a figura da mulher em espaços de memória em Salvador evidencia-se mais como protagonista nos memoriais em relação aos museus por serem esses espaços responsáveis por homenagear figuras representativas de um grupo político, religioso, ou mesmo uma personalidade de grande veiculação midiática no cenário cultural da cidade. (p.26)”.


O Museu Afro-brasileiro, da Universidade Federal da Bahia, tem como objetivo fazer um trabalho de preservação, valorização e divulgação das culturas africanas e afro-brasileira. Nesse sentido, pretende ser um espaço de identidade e memória da população afrodescendente e contribuir para a construção e estruturação de uma educação que incentive as relações étnico-raciais positivas e precisas. Enquanto museu universitário, se propõe a promover atividades de pesquisa, ensino e extensão, difundir e socializar as informações oriundas do seu acervo, por meio de cursos, exposições temporárias e publicações, procurando oferecer subsídios aos pesquisadores e inúmeros estudantes que visitam o museu. Sua identidade visual se assenta em três pilares fundamentais: proximidade, pluralidade e dinâmica. O MAFRO não é apenas um museu - ele é o espaço, por excelência, do debate do ser afro-brasileiro a partir dos artefatos que desenharam a cultura do país. Foi inaugurado em janeiro de 1982 e é sediado em Salvador; possui um acervo de mais de 1100 peças de cultura material africana e afro-brasileira, contribuindo ativamente para a divulgação e preservação destas matrizes culturais. Possui uma revista intitulada: Africanidades - onde são discutidas e apuradas questões étnico-raciais e os desdobramentos da diáspora africana na Bahia; assim como um espaço de memória afro-brasileira e de culturas/povos africanos e um espação de interlocução com a comunidade negra. Sua revista pode ser visitada através do site: http://www.mafro.ceao.ufba.br/.   

Neste museu podemos encontrar acervos voltados para religiosidade afro-brasileira. A Coleção de Cultura Material Religiosa Afro-Brasileira é composta por artefatos relacionados principalmente ao candomblé baiano, com predominância de objetos das tradições iorubá e fon – duas das maiores etnias do continente africano em termos populacionais, a partir de elementos das nações nagô, ketu e jeje.


O Acervo Cultura Material Afro-brasileira, tem sua origem relacionada a doações realizadas nas décadas de 70 e 80, por membros de comunidades de terreiro, capoeira e blocos afro, bem como a compras realizadas pela Universidade. É composto por quatro coleções: Capoeira, Blocos Afros e Folguedos, Artes Plásticas e Cultura Material Religiosa Afro-Brasileira.


Alguns objetos e pontos de conversação se repetem ao longo das exposições e é possível encontrar artigos africanos que evidenciam e denotam a mutualidade entre manifestações culturais africanas e afro-brasileiras. Partindo, por exemplo, da exposição de máscaras e esculturas das sociedades tradicionais africanas é notável a tentativa de estabelecer laços e vínculos com a África. A cultura africana sempre partiu do pressuposto de utilizar sua arte para se conectar com sua ancestralidade. Carlos Serrano explica em seu livro, Memórias d’África, que para o africano manter a vida social na sua plenitude é preciso buscar sempre manter em equilíbrio junto ao universo dos ancestrais. O vínculo da vida com as expressões artísticas foi desestruturado em favor das incursões europeias em busca de escravos, o que alterou de maneira irreversível a estrutura social já existente; a arte africana só chega ao Brasil através da escravidão, fazendo com que sofresse um processo de alteração que durou por séculos.


A arte africana tem como um de seus objetivos validar o poder do “rei divino” e canonizar, louvar seus ancestrais; tais objetivos estão presentes em diversas técnicas e formas de expressão - como podem ser vistos no Museu Afro-Brasileiro e no Museu Afro-Brasil. Esta diversidade técnica vai desde instrumentos musicais quanto a formas de tocar e sons a serem reproduzidos.


Assim como o Mafro, o Museu Afro Brasil, localizado em São Paulo, também tem como objetivo fazer um trabalho de preservação, valorização e divulgação das culturas africanas e afro-brasileira. Seu acervo abarca diversos aspectos dos universos culturais africanos e afro-brasileiros, abordando temas como a religião, o trabalho, a arte, a escravidão, entre outros temas ao registrar a trajetória histórica e as influências africanas na construção da sociedade brasileira. O museu possui 11 mil m² e um acervo com mais de 6 mil obras, entre pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, documentos e peças etnológicas, de autores brasileiros e estrangeiros, produzidos entre o século XVIII e os dias de hoje.


Através de seu site - http://www.museuafrobrasil.org.br/ - é possível realizar visitar virtuais educativas. O museu também possui diversas parcerias com institutos e ONG’s ao redor do mundo, tendo assim a possibilidade de disponibilizar digitalmente importantes obras de arte de seu acervo como, por exemplo, em parceria com Google Cultural Institute. Além disso, é possível encontrar diversas exposições femininas, como a de Dona Olga do Alaketu, Clementina de Jesus e Mercedes Baptista.


Olga Francisca Régis, conhecida como Olga do Alaketu, foi mãe de santo do terreiro de candomblé “Ilê maroiá láji” – o famoso “terreiro do alaketu” - por 57 anos. Filha de Etelvina Francisca Régis, Dona Olga é descendente direta da fundadora do terreiro, a africana otampê ojarô (que aqui no brasil foi batizada de Maria do Rosário), princesa da linhagem real arô, do antigo reino de ketu, localizado no atual país benin. sendo o “Ilê Maroiá Láji” um terreiro cuja sucessão de liderança obedece à linhagem sanguínea feminina, após sua morte Olga foi substituída por sua própria filha, Jocelina Barbosa Bispo.


Sambista fluminense, dona de uma voz inconfundível, potente e ancestral, Clementina de Jesus foi a síntese do brasil, expressão de um país de forte herança africana e de singular formação religiosa. Conhecida como rainha quelé, carregava consigo os banzos de seus ancestrais, transformados em cantos, encantos e segredos nos jongos, no partido-alto e nas curimbas que cantava. Diferentemente das conhecidas e famosas “divas do rádio” que brilharam na primeira metade do século XX, a cantora tinha um timbre de voz grave, mas com grande extensão e um repertório de músicas afro-brasileiras tradicionais. Clementina de Jesus é um marco na memória de uma africanidade dos tempos da escravidão que chegou como um trânsito temporal. Para a sambista, referir-se a sua africanidade e religiosidade dizia respeito a sua mitologia africana, dos orixás e seus mitos, da magia e do encantamento. Clementina de Jesus surge no domínio cultural apresentando uma parte do canto e da música negra marcada pelos processos colonizadores, escravistas e classistas, na história brasileira. Portanto, sua força afirma a resistência existente ao extermínio de sua história. A ancestralidade pode ser compreendia como um conjunto de relações, ligações, diversidade, unidade e encantamento (Oliveira, 2007). O que nos leva a entender que Clementina de Jesus serviu, e ainda serve, como uma arma política na defesa da cultura negra. De certa forma, seu canto ancestral não se resumiu em trazer à cena uma oralidade dos tempos da senzala que estava de lado, correndo riscos de ser esquecida, ele serviu também como estratégia política de inserção na indústria cultural.


É necessária uma grande movimentação para retratar, identificar e expor poderes femininos e então, finalmente, transformá-los em uma grande vertente de representação acadêmica museológica; onde mulheres modificariam o campo de domínio de narrativas de suas histórias.


A cultura afro-brasileira possui elementos de uma visualidade específica num contexto sócio-histórico, no qual o modo de vestir implicava uma marca ou numa representação material da posição hierárquica ocupada pela pessoa dentro de uma estrutura social, caracterizada pelo patriarcalismo, sexismo e escravidão. Ao escrever sobre a cultura afro-brasileira tem-se como principal objetivo desconsentir, revogar o negligenciamento da luta negra, seu silenciamento; nesse sentido, a oralidade, o museu e a memória são as principais formas pedagógicas de apreciar e valorizar a cultura apontando formas alternativas de suas representações, que não exóticas e cheias de floreios e folclóricas. É a partir da criação de uma nova memória, ou da quebra de uma memória que foi criada sobre fatos discriminatórios e racistas - que se tem uma ressignificação positiva da identidade negra.


De acordo com o sociólogo francês Halbwachs (1999, p. 24), as memórias coletivas não designam uma possibilidade, mas sim uma representação, um enunciado, que membros de um grupo vão produzir a respeito da memória supostamente comum aos membros desse grupo. Ou seja, a memória é um seguimento de uma lógica do que é significativo para o sentimento de pertencimento e de conservação de um grupo, ou, neste caso, de uma identidade. Sendo assim, a memória e a identidade caminham lado a lado, estando uma apoiada na outra.


A autora Marcia dos Santos coloca em questão a capacidade do indivíduo de se permitir elaborar uma identidade além de si mesmo, ou seja, a memória é uma potencializadora de ações, que envolvem desde a vida política, à vida social, à vida individual. Compreender-se a si como um só é também um fazer-se compreender pelo outro através do todo:


“permanente expressividade da memória nos meios sociais tem uma feição política que mostra as formas com que os sujeitos se posicionam em relação à realidade, interpretando-a e agindo sobre a mesma. É nesse ponto que a memória assume uma “função política de ser entendida como defesa de si e dos outros nos quais o sujeito se reconhece”.  (SANTOS, 2007, p. 84)


A relevância que se tem por trás da necessidade de exposições de histórias negras em museus - e de museus que tratem especificamente da cultura afro-brasileira -, é reivindicar o direito de um povo a uma memória que lhe foi tomada; ocupando desde os setores da educação às relações étnico-raciais pessoais. Ter consciência no que diz respeito à igualdade e valorização do homem de determinada etnia é pertinente para o estudo e busca de nossas raízes. “Toda consciência do passado está fundada na memória. Através das lembranças recuperamos consciência dos acontecimentos anteriores, distinguimos ontem de hoje, e confirmamos que já vivemos um passado.” (Lowenthal, 1981, p. 75)


Museus contam histórias de vida; uma história de vida é outra maneira de considerar a educação. Já não se trata de aproximar a educação da vida, a partir dos pontos de vista da nova educação ou da pedagogia ativa, mas, sim, de considerar a vida como o espaço de formação. A história de vida passa pela família. “A educação é assim feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida.” (Dominicé, p. 140).  Com isso, podemos perceber que exposições em museus detêm grande poder no âmbito pedagógico quando se trata da formação dos indivíduos e das suas identidades, podendo ainda contribuir tanto para a concepção de velhas tradições como para a criação de concepções alternativas sobre o “outro”.

 

Referências biográficas  

 

Drª Jaqueline Ap. M. Zarbato, professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

 

Renata Teodoro Pereira, estudante do curso de História - Licenciatura, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

 

Referências bibliográficas


ANTUNES, Gabriela Borges. Desenquadrando o samba: análise da trajetória de Clementina de Jesus. 2019. 207 f., il. Tese (Doutorado em Sociologia) —Universidade de Brasília, Brasília, 2019.


BUENO, Belmira Oliveira. O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de professores: a questão da subjetividade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 11-30, jan./jun. 2002.


LOPES, Maria Aparecida de Oliveira. Museu Afro Brasil: ampliando e preservando os bens materiais e imateriais da cultura afro-brasileira. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.4, n.1, 2008 p. 140.


MACHADO, Lisandra Maria Rodrigues; ZUBARAN, Maria Angélica. Que memórias e histórias negras se ensinam nos museus? Do esquecimento ao reconhecimento. Linguagens, Educação e Sociedade, Teresina, Ano 19. n.30 jan./jun. 2014.


MUSEU AFRO-BRASILEIRO UFBA. Disponível em: <http://www.mafro.ceao.ufba.br/pt-br >. Acessado em: 22 de março de 2022.


MUSEU AFRO BRASIL. Disponível em: < http://www.museuafrobrasil.org.br/>. Acessado em: 15 de abril de 2022.


SANTOS, Márcia Pereira dos. História e Memória: desafios de uma relação teórica. OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007.


SILVA, Rita de Cássia Alves Lotti. A arte afro-brasileira. Goiânia, v. 18, n. 3/4, p. 313-328, mar./abr. 2008.

8 comentários:

  1. Boa noite. Em sua opinião, como você utilizaria os museus e os itens museológicos para a disseminação do protagonismo feminino negro no ensino de crianças da educação infantil?

    Leila Carla Antunes Novaes

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    1. Olá Leila! Ótima pergunta!

      Através de visitações a museus - virtualmente ou presencialmente -, principalmente museus que tratam da cultura afro e afro brasileira, como o MAFRO e o MAB. Estes museus trabalham com exibições de mulheres negras, apresentando suas vestimentas, seus adereços, adornos e quais eram seus significados; colocando-as como grandes agentes principais de suas histórias.
      A visitação também pode ser feita em sala de aula, criando um ambiente com imagens impressas, em cartolinas, em power point ou da maneira que for viável com o recurso que for disponibilizado a mim como futura professora.

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  2. Em sua opinião como ampliar o acesso a museus com a temática citada e a sua importância para a construção de uma sociedade menos racista?

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    1. Olá! Muito obrigada pela sua pergunta!

      A ampliação do acesso aos museus deve ser feita através de políticas públicas, que ocorrem por trâmites governamentais. Mas um aluno, definitivamente, deve ter contato com um museu através de sua sala de aula; o museu é um elo de ligação à arte, à cultura, ao saber.
      Já que a pergunta trata da “construção de uma sociedade menos racista”, existentes diversos degraus para se chegar a tanto, começando por uma conscientização em massa - conscientização de classe, raça-. Estar em um museu significa ter contato com diferentes culturas, conhecer mais sobre o outro, ter outro olhar sobre o desconhecido – mas para isso é preciso mais do que apenas curiosidade, certo? Eu aconselharia que as visitas fossem guiadas por um profissional da área, para que o passeio seja mais proveitoso para todos e seja entendido qual mensagem está sendo retratada nas exposições.

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  3. Olá! Em sua opinião, como o museu pode contribuir para romper com a visão eurocêntrica e colonizadora que insiste em permear a identidade nacional e alguns livros didáticos?

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    1. Olá Silvia, obrigada pela pergunta!

      Com uma maior valorização e exposição da cultura nacional. Como dito no texto, a necessidade de expor nossas histórias em museus está em “reivindicar o direito de um povo uma memória que lhe foi tomada” - como um museu contribui com isso? Sendo pertinente e fundado à nossa memória.

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  4. Boa noite Renata, parabéns pela tua pesquisa importantíssima para a nossa sociedade!! Escrita maravilhosa!!!

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