Nathália Moro e Anelisa Mota Gregoleti

 MÃOS FEMININAS QUE ALIMENTAM : UM ESTUDO SOBRE A IMPORTÂNCIA DAS MULHERES NA ALIMENTAÇÃO NATIVA DA AMÉRICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI

 

Nathália Moro

Anelisa Mota Gregoleti

 

As culturas nativas da América portuguesa possuíam uma divisão de tarefas bem definida. Na maior parte das vezes, os homens ficavam encarregados da caça, da pesca e das guerras, enquanto as mulheres tinham como funções principais o cultivo e o preparo dos alimentos. Este cotidiano foi observado e descrito atentamente pelos colonizadores. Através do método de estudo do século XVI, que usava as similitudes e comparações como forma de análise, eles buscavam conhecer a natureza do Novo Mundo e as populações que nele habitavam. Ao observarem o dia a dia dos indígenas, uma das questões retratada pelos europeus foi o trabalho feminino e a sua participação na manutenção da alimentação nativa. A maioria dos relatos descreve a relação das mulheres com uma das plantas mais cultivadas e consumidas dentro das aldeias indígenas: a mandioca (Manihot spp.). Do solo à mesa, elas eram encarregadas da produção de todas as manufaturas provenientes desta raiz. Ou seja, eram as mulheres que plantavam, colhiam, extraiam o veneno - quando se tratava da mandioca brava (Manihot utilissima) - e preparavam mantimentos, como a farinha e o cauim. Algumas descrições ainda afirmam que era responsabilidade feminina carregar tais mantimentos durante as expedições guerreiras.

 

Por meio desta comunicação, buscaremos compreender a importância do papel feminino em garantir o mantimento mais apreciado e importante dentro de suas culturas, visto que a maioria dos documentos nos revela uma relação muito próxima das mulheres com o cultivo da mandioca e com todos os processos de manufaturas que envolviam esta raiz. Nosso objetivo é compreender a importância do papel feminino dentro das sociedades nativas e a sua relação com um dos alimentos indispensáveis da América portuguesa quinhentista. Acreditamos que esta temática deve ser explorada e trabalhada em sala de aula através de debates e da investigação das fontes históricas que nos permitem entender como estas mulheres foram vistas por colonizadores europeus no período quinhentista.

 

Introdução

 

Observar, descrever e classificar espécies e populações tornaram-se as principais tarefas dos europeus recém-chegados ao Novo Mundo no início do século XVI. O processo de adaptação e colonização da América portuguesa só foi possível graças ao estudo minucioso desses viajantes. Ao utilizarem um dos métodos mais eficazes: a análise do cotidiano dos povos nativos, os viajantes quinhentistas conseguiram identificar os alimentos que poderiam ser consumidos e as técnicas que deveriam ser empregadas em seu preparo. Ou seja, o recurso ao conhecimento indígena resultou do alto grau de contato que o colonizador manteve com as populações nativas (SILVA, 2008, p. 33).

 

As raízes comestíveis do Novo Mundo tropical chamaram muito a atenção dos primeiros europeus. Isso porque elas eram novidades para eles, que conheciam somente nabos, cenouras e rabanetes plantados em hortas do Velho Mundo. Consequentemente, seus relatos estão cheios de descrições a respeito dessas plantas, do seu cuidado e uso (SAUER, 1987, p. 69).

 

A mandioca (Manihot spp.), por exemplo, mostrou-se vantajosa aos viajantes por vários fatores. O principal deles, sua alta adaptabilidade ao clima sul-americano, deve-se ao fato dela ser uma planta nativa deste continente. Esta raiz também possuía grande disseminação territorial e podia ser cultivada com facilidade, uma vez que as sociedades pré-colombianas já a exploravam largamente quando os primeiros colonizadores chegaram (ESPM; SEBRAE, 2008, p. 7-13). Outra característica que se destacou foi sua diversidade nutricional proporcionada, especialmente, por duas manufaturas: a farinha e o cauim.

 

Uma questão interessante que pretendemos analisar ao longo deste artigo é que todo o processo que estava relacionado, de uma forma ou de outra, à mandioca ficava sob o encargo das mulheres indígenas. O fato de elas plantarem, colherem, assarem e beneficiarem a mandioca não passou despercebido pelos cronistas.

 

Resultados

 

A mandioca tornou-se uma das plantas mais descritas pelos europeus durante o século XVI. A busca por registros que pudessem detalhar as características desta raiz nos revelam como ela estava presente nas comunidades nativas. Na realidade, quando os primeiros europeus chegaram ao Novo Mundo, essa planta já era cultivada na região tropical há, pelo menos, quatro ou cinco mil anos (ADAMS et al, 2006; DEAN, 1996; SAUER, 1993, apud SILVA, 2008, p.12) e, por isso, compunha a base da alimentação das mais diversas sociedades da América do Sul.

 

Dentro do processo de obter mais informações a respeito dessa raiz tão consumida, os viajantes puderam perceber como estavam estabelecidas algumas divisões de tarefas dentro das tribos indígenas. O franciscano francês André Thevet, ao observar os costumes dos índios tupinambás, afirma que as mulheres trabalhavam incomparavelmente mais que os homens, já que, além de serem responsáveis por todos os cuidados familiares, elas eram encarregadas de colher raízes e frutos, preparar farinhas e bebidas, e cultivar os solos. Enquanto os homens, eventualmente, saiam para pescar ou caçar e confeccionavam arcos e flechas (1978, p. 137).  Outro religioso, o jesuíta português Manuel da Nóbrega, também observou, atentamente, quase a mesma divisão de tarefas, diferenciando-se apenas por relatar que os homens também ficavam responsáveis pelas roças (1931, p. 139).

 

No entanto, a maioria dos relatos revela que as mulheres eram as encarregadas do plantio da mandioca. Um exemplo disso é que ao se aproximar de uma aldeia denominada Ubatuba, o alemão Hans Staden percebeu que mulheres estavam trabalhando no campo, onde algumas cultivavam a mandioca e outras haviam acabado de colher as raízes da planta (1999, p. 62).

 

Mais do que uma divisão social de atividades, podemos considerar que existia uma hierarquia entre as tarefas nas quais a mandioca estava envolvida. Thevet, ao tratar mais uma vez sobre este tema, justifica-o da seguinte forma: “Todo o processo de plantio, colheita e preparo das raízes é deixado às mulheres, pois os homens consideram tal ocupação indigna deles.” (1978, p. 192). Esse relato evidencia uma posição mais elevada dos homens que não aceitavam realizar atividades atribuídas às mulheres. A questão da hierarquia aumenta ainda mais quando tratamos das manufaturas produzidas a partir da mandioca.

 

A farinha de mandioca, também denominada de farinha de pau, foi muito descrita pelos europeus, principalmente, por ter substituído a farinha de trigo na América portuguesa. Tal como nos dias de hoje, os nativos já empregavam as espécies da mandioca de forma distinta, pois devido seu sabor amargo, a mandioca brava (Manihot utilissima) geralmente é utilizada na fabricação de farinha, enquanto a mandioca mansa (Manihot esculenta) é preparada para ser consumida pura por causa de sua baixa toxicidade (ESPM; SEBRAE, 2008, p. 10).

 

De acordo com o senhor de engenho português Gabriel Soares de Sousa, as mulheres mais velhas eram as encarregadas de fabricar a farinha e os utensílios usados no seu preparo, tais como panelas, púcaros e alguidares (1971, p. 312). O preparo da farinha pelas mulheres é unanimidade nas fontes quinhentistas. Ao longo do seu processo, são realizados seis passos principais: a colheita da mandioca, sua lavagem e descascamento, o ralamento das raízes, a prensagem no tipiti, o peneiramento e a torração da farinha para retirar a umidade. Dentre esses, o mais importante é a prensagem no tipiti, pois essa prensa de trançado especial duplo e forma cilíndrica, elaborada pelos indígenas, permite o escoamento do líquido venenoso da mandioca composto por ácido cianídrico (PINTO, 2002, p. 6-7). O missionário protestante francês Jean de Léry descreve alguns desses processos ao afirmar que depois de colher as raízes, as mulheres:

 

“[...] secam-nas ao fogo [...]; ou então as ralam ainda frescas sobre uma prancha de madeira, cravejada de pedrinhas pontudas (como o fazemos ao queijo e à noz moscada), e as reduzem a uma farinha alva como a neve. Essa farinha ainda cura, bem como o farelo branco que dela sai apresentam um cheiro de amido diluído durante muito tempo na água [...]” (1961, p. 102 – 103).

 

As duas variedades mais citadas pelos europeus são a farinha seca e a farinha-de-guerra. Pero de Magalhães Gandavo, um cronista português, depois de observar esses dois tipos, concluiu que a farinha seca é mais saborosa do que a farinha-de-guerra, mas não deixou de notar uma característica importante desta última: seu maior tempo de duração (2008, p. 108). Justamente por isso, a farinha-de-guerra ganhou enorme popularidade entre os colonizadores. Além de conservar-se por mais tempo, ela podia ser facilmente armazenada e ainda fornecia muita energia. Naturalmente, os indígenas já a utilizavam tanto em seus serviços centrais quanto em suas guerras (ANCHIETA, 1988, p. 435). As índias estavam envolvidas até mesmo no momento de levar a farinha-de-guerra para as expedições. Jean de Léry deixa esse aspecto muito nítido depois de observar atentamente como os tupinambás se organizavam para estas empreitadas guerreiras: “Reúnem-se em número de oito ou dez mil, aos quais se agregam muitas mulheres, não para combater mas para carregar as rêdes, a farinha e os demais víveres [...]” (1961, p. 149).

 

O cauim era outra manufatura que as mulheres indígenas estavam encarregadas de preparar. Para conseguirem o teor alcoólico desejado, elas cortavam a mandioca em finas rodelas, ferviam-as em grandes vasilhas de barro com água para que amolecessem, depois mastigavam as rodelas e as jogavam em outras vasilhas para que uma nova fervura fosse realizada. Posteriormente, a bebida era colocada em vasos de barro para que o processo de fermentação pudesse ser concluído (LÉRY, 1961, p. 106). Assim, a fermentação só podia ser obtida justamente através da mastigação da mandioca, uma vez que a saliva auxiliava este processo (BALDUS, 1950, p. 162). Léry logo percebeu que sem passar por essa etapa o cauim não ficava bom, pois ao tentarem preparar a bebida de forma “mais limpa”, eles procuraram evitar a mastigação da mandioca, mas constataram que a experiência não foi positiva (1961, p.109).

 

O tempo de fermentação do cauim era o que ditava o tamanho das festas nas quais ele era consumido, que iam desde pequenas reuniões entre casas vizinhas, passando por rituais de passagem como nascimento, menarca, nominação ou morte, até os grandes festivais antropofágicos que contavam com a presença do inimigo que seria morto e dos convidados de outros grupos locais (SZTUTMAN, 2008, p. 225). A fim de tornar a bebida mais alcoólica, os nativos também acrescentavam açúcar nela por meio do mel ou de frutas (BROCHADO; NOELI, 1998, p. 118).

 

Além de prepararem o cauim, as mulheres realizavam praticamente todas as outras atividades referentes às celebrações onde ele era consumido. No caso dos rituais antropofágicos, a partir do momento em que se decidia a data em que o prisioneiro iria ser morto, as mulheres já começavam a preparar todos os utensílios necessários: panelas, alguidares, potes grandes para os vinhos, etc. (CARDIM, 2015, p. 56).  E quando o cauim era finalmente consumido nestas comemorações também eram elas as responsáveis por entregar a cada homem sua cuia cheia de bebida (LÉRY, 1961, p. 107).

 

Por último, é indispensável analisarmos outro trecho escrito por Jean de Léry que deixa muito claro que as diferentes tarefas empregadas dentro das tribos indígenas não eram vistas como equivalentes. De acordo com o missionário, que conviveu de perto com os tupinambás, era indecente para um homem preparar o cauim, uma vez que:

 

“São as mulheres [...] que tudo fazem nessa preparação, tendo os homens a firme opinião de que se êles mastigarem as raízes ou o milho a bebida não sairá boa. Consideram tão indecente ao seu sexo meter-se neste trabalho quanto nós consideraríamos indecente que os camponeses seminus da Bresse ou de outras regiões pegassem na roca para fiar”. (1961, p. 106).

 

Considerações finais

 

O alimento, além de satisfazer a fome, pode despertar memórias, trazer conhecimento e atuar terapeuticamente em situações de doença. A alimentação humana, os produtos selecionados para transformarem-se em “comida”, os equipamentos, utensílios, técnicas e tecnologias usadas neste processo, fazem parte da manifestação da cultura de um povo (LIMA et al, 2012, p. 3). No caso da mandioca, podemos verificar sua relevância no imaginário popular a partir das lendas indígenas. Sua origem é descrita por elas como um presente divino, tamanha a importância desta raiz na subsistência diária dos nativos (SILVA, 2008, p. 14). Mais do que matar a fome, essa planta estava presente e era empregada em diversos âmbitos do cotidiano da colônia.

 

Dessa forma, ao analisarmos os relatos a respeito do papel das mulheres indígenas em suas tribos, constatamos que elas sempre são citadas quando os viajantes descrevem os diversos usos da mandioca na América portuguesa. Por isso, nosso objetivo com esta comunicação foi analisar e compreender melhor como os europeus enxergavam as divisões de tarefas estabelecidas dentro das tribos indígenas, tendo sempre em mente que os relatos nos apontam, claramente, uma distribuição de afazeres de acordo com o sexo, bem como uma forte hierarquização nestas atividades cotidianas.

 

Referências biográficas

 

Nathália Moro, doutoranda em História pela Universidade Estadual de Maringá.

 

Anelisa Mota Gregoleti, doutoranda em História pela Universidade Estadual de Maringá.

 

Referências bibliográficas

 

Fontes documentais

 

ANCHIETA, José de. Cartas Jesuíticas 3 - Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

 

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo: Poeteiro Editor Digital, 2015.

 

GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008.

 

LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. [S.I.]: Biblioteca do Exército, 1961.

 

NÓBREGA, Manoel da. Cartas Jesuíticas I - Cartas do Brasil. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931.

 

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil. São Paulo: Brasiliana, 1971.

 

STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens. 2. ed. Rio de Janeiro: Dantes, 1999.

 

THEVET, André. As singularidades da França Antártica. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978.

 

Bibliografia

 

BALDUS, Herbert. Bebidas e narcóticos dos índios do Brasil: sugestões para pesquisas etnográficas. Separata da Revista Sociologia, São Paulo, v. XII, nº 2, p. 161-169, 1950.

 

BROCHADO, José Proenza; NOELLI, Francisco Silva. O cauim e as beberagens dos Guarani  e Tupinambá: equipamentos, técnicas de preparação e consumo. Rev. Do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, v. 8, p. 117–128, mar. 1998.

 

ESPM; SEBRAE. Relatório completo: Estudo de mercado sobre a mandioca (farinha e fécula), 2008.

Disponível                                                                                                                 em:

<http://bis.sebrae.com.br/conteudoPublicacao.zhtml?id=2189>. Acesso em: 19 de set. 2017.

 

LIMA, Felipe Borborema Cunha et al. A mandioca: do cultivo do 'alimento' a elaboração da 'comida'. Anais do VII Seminário de Pesquisa em Turismo do Mercosul. Caxias do Sul: Semintur, 2012, p. 1-16.

 

PINTO, Maria Dina Nogueira. Mandioca e Farinha: subsistência e tradição cultural. Série Encontros e Estudos. Seminário Alimentação e Cultura - Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular. Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/FUNARTE/Secretaria do Patrimônio, Museus e Artes Plástico - Ministério da Cultura, 2002.

 

SAUER, Carl O.. As plantas cultivadas na América do Sul Tropical. In: RIBEIRO, Darcy (Ed.). Suma Etnológica Brasileira. 2 ed. Petrópolis: FINEP; Vozes, 1987. p. 59 – 90. V. 1.

 

SILVA, Henrique Ataide da. Mandioca, a rainha do Brasil? Ascenção e queda da Manihot esculenta em São Paulo. 2008. 168 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

 

SZTUTMAN, Renato. Cauim, substância e efeito: sobre o consumo de bebidas fermentadas entre os ameríndios. In: CARNEIRO, Henrique et al (orgs.). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 219-250.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.