Luciano José Vianna e Jefferson David Fonseca Alves

AS LEIS DOS FRANCOS SÁLIOS (SÉCULO VI): DIVERSIDADE SOCIAL FEMININA NA FORMAÇÃO DOCENTE EM HISTÓRIA

 

Luciano José Vianna       

Jefferson David Fonseca Alves

 

Este capítulo se propõe a abordar a condição feminina nas Leis dos Francos Sálios (século VI), buscando explorar os textos normativos a respeito das personagens femininas através de um viés social, voltando-se, portanto, para o campo de estudos História das Mulheres no Medievo. Além disso, também se propõe a refletir sobre as possibilidades de utilização deste documento na formação docente em História.

 

A partir da década de 1960 do século XX o movimento feminista se manifestou em termos sociais. Na década seguinte, os pensamentos advindos deste movimento chegaram até o campo acadêmico trazendo novas possibilidades de estudos voltados para as mulheres (SCOTT, 1992). Essas novidades marcam um caminho de pesquisa importante a partir daquele momento, destacando o contexto feminino a partir de então no desenvolvimento histórico, principalmente no contexto medieval. No caso do presente capítulo, a proposta é abordar a presença do contexto feminino nos textos jurídicos medievais.

 

Para desenvolver este estudo, a obra utilizada como fonte historiográfica são as Leis dos Francos Sálios, especificamente a sua parte mais antiga, o pactus legis salicae, produzido pela dinastia merovíngia a partir do século VI. A dinastia merovíngia estava relacionada aos francos sálios que se estabeleceram às margens do rio Issel durante o período das migrações germânicas. O pactus legis salicae teve a sua primeira publicação no período do reinado de Clovis (466-511), em 507, e suas reedições entre os anos de 567 e 597. Depois disso, o pactus legis salicae teve sua última versão reeditada e culminada na lex sálica desenvolvida já no período carolíngio.

 

As Leis dos francos sálios como aparelho judiciário para a solução de conflitos no reino dos francos

 

É importante destacar o papel que o pactus legis salicae tem enquanto fonte de história social e cultural. De acordo com Peter Burke, para compreender os mecanismos de funcionamento de uma sociedade, é sempre esclarecedor abordar as questões sobre as regras de convivência social e de exclusão (BURKE, 2000, p. 85). Os textos jurídicos são os aparelhos pragmáticos de controle social, além de fornecer para o pesquisador informações sobre as regras de convivência social de determinada sociedade.

 

A compreensão da sociedade moderna sobre o conceito de lei está vinculada ao procedimento de prescrição de regras que emanam da autoridade soberana de uma determinada sociedade, sendo que a mesma desenvolve mecanismos de controle sobre a conduta dos indivíduos integrantes. Segundo Joye, em relação aos estudos sobre as leis no Medievo, observa-se um interesse de historiadores do direito na compreensão dos costumes e direitos das sociedades que se estabeleceram nas regiões ocidentais periféricas imperiais romanas, conhecidos como “povos bárbaros” (JOYE, 2016, p. 28-29).

 

Os povos germânicos constituem uma série de grupos que viviam nas proximidades das fronteiras do Império Romano. A partir da segunda metade do século II, as fronteiras imperiais romanas experimentaram as primeiras fases de deslocamento destes grupos (LE GOFF, 2016, p. 16). O período entre os séculos II e VI é conhecido como o contexto dos deslocamentos de povos germânicos às terras imperiais romanas ocidentais. Uma das primeiras teorias para a designação de germano aconteceu em meados do século I a. C. pelo historiador grego Posidônio (155- 51 a.C), que assim definia o conjunto de povos que viviam entre os rios Reno e Vístula. Na mesma época, Estrabão (63-23 a.C) acreditava que o termo era um vocábulo latino advindo de germen que indicaria aqueles que estavam unidos pelo sangue (GUERRAS, 1987, p. 9-10). A princípio, por ser uma designação dos romanos aos galos, provavelmente, os povos germânicos desconheciam essa conceituação.

 

Com o passar do tempo, os chamados reinos germânicos foram se estruturando gradativamente, até formarem diversas realidades políticas no contexto do século VI (GENET, 2002, p. 398-399). Neste sentido, as leis germânicas são fontes de informações sobre o funcionamento social no interior desses grupos. A mulher sálica estava inserida nesse contexto social e político, e a lei sálica dispõe de títulos normativos sobre a figura feminina, seus espaços e os aspectos situacionais que a envolviam.

 

Situações e espaços da mulher em termos sociais nas leis dos francos sálios (Século VI)

 

A primeira vez que a mulher é citada no pactus legis salicae é na situação de escravizada, precisamente no título X da lei, “concerniente a siervos o esclavos robados”. A situação da mulher, nessa circunstância, era de propriedade do seu dono. Sendo assim, se a mesma fosse roubada do seu escravizador (dono), deveria ser devolvida e o ladrão ainda pagaria uma multa, além de um valor a mais pelo atraso na devolução. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p. 10).

 

Outra situação é relacionada ao rapto de mulheres livres cometidos por homens livres, exposto no título XIII da lei “acerca del rapto de mujeres libres por parte de hombres libres”. Neste item existem situações específicas nas quais se pode analisar as relações sociais nas quais a mulher estava inserida. Assim, é possível observar que a mulher pode ser alguém protegida pelo rei, caso no qual se verifica uma situação de subordinação da mulher a uma figura masculina. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p. 13). Segundo Ruiz, a personagem feminina sálica ou a visigótica, ou mesmo a mulher alamana, era a figura central cujas legislações abordavam como objeto de direito frente a um delito (RUIZ, 2017, p. 53).

 

À figura feminina, casada ou solteira, na sociedade sálica do século VI, é estabelecida uma condição social de protegida de alguém. Essa proteção, em relação à mulher casada, seria do seu marido, figura de autoridade superior dentro do ambiente doméstico; quando solteira, do seu pai, irmão ou até mesmo do rei (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p. 13).

 

O mesmo título da lei sálica destaca que as mulheres não podiam se casar com o pai, irmão, primo, tio, sobrinho ou avô, destacando assim a presença de um crime relacionado ao incesto. Se isso viesse a acontecer, o casamento seria desfeito, e se dessa união resultasse filhos estes não seriam herdeiros legítimos e ainda seriam marcados com infortúnio. Esta situação era considerada profana, algo que fugia os ideais sagrados:

 

“El que se une en matrimonio profano con la hija de su hermano o de su hermana o una prima (hija de una sobrina o sobrino o sobrina nieta o sobrino nieto) o la esposa de su hermano o del hermano de su madre, quedará sujeto al siguiente castigo: la pareja será separada de esa unión y, si tuvieron hijos, estos no serán herederos legítimos y serán señalados con desgracia.” (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p. 13).

 

Existia também uma relação protetiva quanto ao corpo da mulher livre. A lei sálica tipifica como crime o ato de um homem tocar um braço, a mão, o dedo ou qualquer parte do corpo de uma mulher livre (título XX da lei, “concerniente al hombre que toca la mano o el brazo o el dedo de una mujer libre”). Percebe-se, portanto, que o corpo de uma mulher livre, entre os francos sálios, deveria ser respeitado. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p. 19).

 

As situações que envolviam as personagens femininas que a lei permite analisar são diversas: assassinato de mulheres livres e escravas com punições diferentes de acordo com a classe social da mulher; mulheres livres que passam a ser escravizadas se tiverem relações sexuais com escravos; mulheres jovens e mulheres casadas. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p. 20-21). 

 

Os espaços sociais ocupados pelas mulheres no documento são muitos restritos. Basicamente são dois: livres e escravizadas. Mas a lei também estabelece crimes nos quais se pode observar alguns espaços da vida cotidiana em que as mulheres estavam presentes como, por exemplo, a serviço do rei, espaço que a caracteriza como tutelada por ele e mulheres realizando trabalhos da vida comum. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p.13). 

 

As diferenciações sociais entre as personagens femininas presentes nas leis dos francos sálios

 

Sobre as diferenças sociais femininas o pactus leges salicae não dispõe de muitas normas que indiquem distinções de tratamento quanto às mulheres. A lei apenas, em alguns de seus títulos, apresenta personagens femininas com posições diferentes na sociedade e ainda assim, como já mencionado, limitadas a duas posições: mulheres livres e mulheres escravas. Todas essas figuras femininas recebem tratamento de subordinação à figura masculina igualmente pela lei. Assim, torna-se necessário explorar brevemente os normativos relativos às diferenças sociais e qual o tratamento que a lei estabelece em relação a essas diferenciações.

 

As Leis dos Francos Sálios possuem nos títulos de alguns normativos referências apenas as mulheres livres, como é o caso do capítulo XIII (“Acerca del rapto de mujeres libres por parte de hombres libres). Porém, há referências à mulher em três situações diferentes: 1) a jovem não casada e livre; 2) a mulher casada e livre e 3) a escrava. Quanto às distinções nesse título, a lei atribui o rapto apenas as jovens livres e as escravas. Nos casos das jovens livres não casadas, as sanções para seus raptores eram pecuniárias (além das sanções pecuniárias havia também, culminada com estas, as sanções que escravizavam o agente infrator), salvo se a jovem seguisse os raptores voluntariamente; nesse caso, ela perderia sua liberdade: “Si la joven libre siguió voluntariamente a uno de estos, ella perderá su libertad”. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p. 13). Quanto às escravas raptadas, a pena aos seus raptores era a perda da liberdade: El hombre libre que toma a la esclava de otro hombre libre será castigado del mismo modo. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p.13).

 

Para as mulheres livres, o capítulo estabelece apenas um único parágrafo que se refere à mulher que se casou: “El que toma a una mujer semi-libre (litam) en matrimonio (ambahtonia) deberá pagar mil doscientos denarios, o sea, treinta sueldos”. Isso porque a mulher, para se unir em matrimonio, necessitaria da aprovação dos seus parentes, e caso se casasse sem esse consentimento o homem estaria cometendo crime de acordo com a lei sálica. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p.13).

 

pactus leges salicae, nas situações estabelecidas, define muito pouco os ambientes de diferenciação entre as mulheres. Além disso, existem punições de perda da liberdade; caso que se diferencia, por exemplo, da Lei dos Lombardos sobre a mesma situação: “El que rapte a una esclava de otro hombre, pagará veinte sueldos de reparación” (Leyes de los Longobardos, 2018, p. 32). No caso da Lei Sálica, raptar uma escrava é um crime mais grave, na qual o raptor seria colocado na condição de escravo. (Leyes de los francos sálicos y Ley sálica carolina, 2017, p. 13).

 

O rei Clotário I (511-561) adicionou à lei o capítulo III e no título XCIII estabeleceu a situação de que, se uma mulher se casasse com um dos seus escravos, perderia todos os seus bens e ainda poderia ser morta por seus parentes, e estes seriam protegidos pela lei:

 

“Si una mujer se une en matrimonio con su propio esclavo el fisco adquirirá todas sus posesiones y ella misma quedará fuera de la ley. Si uno de sus parientes la mata nada podrá requerirse de ese pariente o del fisco por su muerte. El esclavo será sometido a la más severa tortura, es decir, será colocado en la rueda. Y si algún pariente de la mujer le proporciona alimento o refugio, deberá pagar quince sueldos.” (Leyes de los francos sálicos e Ley sálica carolina, 2017, p. 74).

 

A utilização das leis dos francos sálios na formação docente em História

 

Com a publicação da última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o sexto e o sétimo anos ficaram com alguns recortes voltados para a abordagem sobre o período medieval, e precisamente no sexto ano encontra-se a possibilidade de se trabalhar no ensino de História com a perspectiva feminina no Medievo. Dessa forma, um dos aspectos que se deve considerar na formação docente em História na atualidade é o destaque necessário para a História das Mulheres, e a documentação do Medievo apresenta diversas situações nas quais tais destaque pode ser trabalhado na formação docente.

 

Como podemos observar, as Leis dos Francos Sálios se trata de um documento no qual é apresentada uma diversidade de situações sociais femininas nos primeiros séculos do Medievo e pode ser um documento utilizado na formação docente em História ressaltando a História das Mulheres no Medievo por alguns motivos.

 

Em primeiro lugar, por uma questão de complexidade social: trata-se de uma documentação que destaca uma diversidade de situações jurídicas para o povo franco sálio perante outros grupos sociais do século VI, e assim se ressalta a diversidade jurídica entre os povos que formariam os reinos germânicos do século VI. Trabalhar com este documento na formação docente, portanto, favorece o pensamento crítico do futuro professor e da futura professora no cuidado em não fazer simplificações sociais entre os grupos germânicos.

 

Além disso, por uma questão de destaque social feminino: as Leis dos Francos Sálios destacam a presença de um cenário social feminino em meio à organização dos reinos germânicos no século VI. Neste sentido, a presença destacada das mulheres neste documento já indica a preocupação que havia para com o cenário feminino, o que deve ser ressaltado no momento de se trabalhar com estes primeiros séculos do Medievo na formação docente.

 

Por fim, por uma questão de diversidade social feminina: utilizar as Leis dos Francos Sálios na formação docente em História é proporcionar ao futuro docente pensar em termos de diversidade social no Medievo, pois muitas vezes este docente inicia os estudos sobre este período histórico no curso de História ainda tendo como base de diversidade social a simplificação da ideia das três ordens: aqueles que oram, aqueles que guerreiam; aqueles que trabalham. Assim, este documento apresenta uma oportunidade de se trabalhar com a diversidade social feminina no período, fazendo com que este grupo social não somente tenha presença na formação do docente em História, mas também que não seja compreendido a partir de uma uniformidade e simplificação social.

 

Considerações sociais

 

A partir das ideias discutidas neste capítulo, é notório que a revolução historiográfica produzida pelos historiadores da terceira geração dos Annales trouxera diversas possibilidades de exploração dos mais variados campos de estudo, e também a delimitação de campos de estudos como o das mulheres, por exemplo. A História das Mulheres, atualmente, é um campo de pesquisa consolidado e que precisa ser refletido cada vez mais no âmbito do ensino de História. Neste sentido, a História das Mulheres no Medievo tem sido um locus de pesquisa no qual cada vez mais se tem destacado uma diversidade de situações sociais e que também precisam se refletir no contexto do ensino de História.

 

Na formação docente devem ser observadas as possibilidades de se preparar o futuro docente em História a partir da utilização de uma diversidade de fontes de época, principalmente ressaltando a diversidade e complexidade social do período, o que faz com que o mesmo evite ser visto a partir de situações simplificadas e fórmulas que não tem mais lugar na pesquisa histórica atual. As Leis dos Francos Sálios, neste sentido, tornam-se um documento a ser considerado para se trabalhar com esta diversidade social feminina na formação docente, proporcionando ao aluno um caminho para se observar a complexidade deste grupo social já no início do Medievo.

 

Referencias biográficas

 

Luciano José Vianna é Professor adjunto de História Medieval da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Coordenador do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina) (@spatioserti).

 

Jefferson David Fonseca Alves é graduando do Curso de História da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina). Atualmente realiza seu projeto de Iniciação Científica como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob a orientação do Prof. Dr. Luciano José Vianna, cujo título é “O contexto feminino nas leis dos Francos Sálios (século VI): situações, espaços e comportamentos”.

 

Referências

 

Fontes

 

Leyes de los francos sálicos y Lei sálica carolina. Colección leyes romanogermánicas. Grupo de investigación y estudios medievales. Centro de estudios históricos. Facultad de Humanidades. Universidad Nacional del Mar del Plata, 2017.

 

Leyes de los LongobardosColección leyes romanogermánicas. Grupo de investigación y estudios medievales. Centro de estudios históricos. Facultad de Humanidades. Universidad Nacional del Mar del Plata, 2018.

 

Bibliografia

 

BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Line art, 2000.

 

GUERRAS, Maria Sonsoles. Os povos bárbaros. São Paulo: Ática, 1987.

 

GENET, Jean-Philippe. Estado. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. V. 1. São Paulo: Edusc, 2002, p. 397- 409.

 

JOYE, Sylvie. As leis bárbaras: objetos da história e da historiografia. Signum, vol. 17, num. 1, 2016, p. 27-47.

 

LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Rio de Janeiro: Vozes, 2016.

 

RUIZ, Armando José Torrent. La represión del adulterium en las leyes romano-bárbaras y particularmente en la legislación hispano-visigótica. Teoría e storia del diritto privato, n. 10, 2017, p. 2-75.

 

SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: A escrita da História. Novas perspectivas. Peter Burke (Org.). São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 63-96.

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