Lorene Rose Ribeiro dos Santos

REFLEXÕES SOBRE ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL PÓS BNCC: COMO A MULHER É VISTA NA BASE E NOS LIVROS DIDÁTICOS?

 

Lorene Rose Ribeiro dos Santos

 

Com a publicação da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) houve uma nova orientação curricular para todo o território nacional. Neste cenário, podemos observar que durante a construção do documento houve uma conjunção de situações que tornaram alguns temas invisíveis ou pouco explicitado por ela. Resgatando as ideias de Bittencourt, (2019, p. 554), “isso ocorreu por dois contextos: o de influência e o de produção de textos e da prática, o que gerou, no atual documento, permanências, reinterpretações, contradições e, principalmente, ausências sociais e formativas oriundas da influência do contexto neoliberal”. Estas reflexões, com mais profundidade, também estão presentes na dissertação: “A História Medieval entre o livro didático e a BNCC”.

 

No caso da História Medieval podemos dizer que após a insistência dos movimentos dos medievalistas o período compreendido como medievo conseguiu seu lugar na segunda versão, e mesmo o documento entendendo-o como um período de continuidade, percebe-se que há ainda muito a se discutir, pois, existem vários medievos, para além do defendido pelos renascentistas que o definiram como “idade das trevas”, estereótipo, este, ainda muito propagado em sala de aula.

 

Para tratar da História das Mulheres no Medievo no livro didático e na BNCC é necessário a priori compreender a multiplicidade que o próprio período possui. É preciso compreender o medievo entendendo que ele é múltiplo, pois existem vários medievos, e, “sempre que se fala em sonhar com a Idade Média, é necessário saber de qual Idade Média se está falando; Eco (1986) tenta elencá-las em dez tipos, sendo eles: 1) Idade Média como pretexto; 2) Idade Média como um espaço para revisitação irônica; 3) Idade Média como uma era bárbara; 4) Idade Média do Romantismo; 5) Idade Média da Filosofia Perene; 6) Idade Média das identidades nacionais; 7) Idade Média do decadentismo; 8) Idade Média da reconstrução filológica; 9) Idade Média da chamada “tradição”, ou filosofia oculta; e 10) Idade Média da expectativa do milênio”. (RAMOS, 2021, p. 9). Essa conscientização sobre sua pluralidade vem dando notoriedade aos trabalhos sobre o período na medievalística brasileira e deveria também chegar até a sala de aula.

 

Muitos trabalhos sobre o Medievo escritos até então buscaram corrigir erros de interpretação sobre a temporalidade, bem como equívocos sobre os estereótipos divulgados, a partir da base, o olhar voltou-se para o ensino de História Medieval em sala de aula, e principalmente sobre as ausências que o documento possui. E mesmo após a publicação, “convém observar que os conteúdos reforçam a perspectiva de uma Idade Média como temporalidade europeia e reafirmam a ideia da sociedade Medieval forjada na crise do Baixo Império Romano, marcada por poderes fragmentados, perspectiva na qual se fundamenta a recorrente referência à violência, à anarquia feudal e à ausência de autoridades públicas, elementos diretamente relacionados ao paradigma estatal moderno. Do mesmo modo, a opção ressalta uma Igreja detentora da cultura e deveras institucional, quiçá a “senhora feudal” ainda tão estudada no ensino de História (...). Ademais, ao enfatizar um espaço urbano, comercial e letrado, e não mencionar, por exemplo, o mundo rural ou senhorial, a versão contribui para uma ideia desequilibrada do período e que tende a encarar a cidade como antítese do feudalismo”. (LIMA, 2019, p. 9).

 

Mesmo com o esforço dos medievalistas brasileiros em defender a permanência do período, ele está limitado a um aspecto colonizador na base. Estuda-se apenas a Europa Ocidental (França, Alemanha e Inglaterra) e dentro de um contexto feudal, onde apenas este fenômeno aparece quase que como uma definição de sinônimo ao período. Portanto, estudá-la com profundidade nos alerta para o fato de que a BNCC reforça elementos como estado, violência e igreja como eixos explicativos do período, aspectos que, para a Medievalística atual, são considerados como falsas concepções acerca da Idade Média, conforme afirma Lima (2019, p. 10).  Neste sentido, o ensino de História Medieval deixa de ser visto como uma ação para além do estudo e do ensino da narrativa do passado, tão presente ainda nas práticas docentes em sala de aula, e passa a ser compreendido como um momento no qual o docente tem a oportunidade de proporcionar ao cidadão em formação o pensar historicamente, com uma visão mais ampla, crítica e, em termos historiográficos, contemporânea em relação ao passado, apresentando um conteúdo curricular atualizado em relação ao período.

 

No tocante a História da Mulher no Medievo podemos destacar que ela somente é mencionada no documento da base dentro do escopo objetos do conhecimento e nas habilidades. Fazendo uma busca sobre a palavra “mulher” na base, encontramos apenas sete menções, conforme demonstra figura abaixo:

 

Destas sete menções, no que diz respeito a mulher medieval temos apenas quatro, são elas: “O papel da mulher na Grécia e em Roma, e no período medieval” (BRASIL, 2018, p. 420); que se repete; “(EF06HI19) Descrever e analisar os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo antigo e nas sociedades medievais” (BRASIL, 2018, p. 421); que também se repete. Ou seja, somente dentro de uma lógica de que existe um papel para mulher neste período. É sabido que essa predominância de explicar e separar papeis femininos e masculinos já é algo que não deveria ser mais trabalhado em sala de aula e nem muito menos dentro de uma orientação curricular, pois tais discussões dentro do contexto atual e na contemporaneidade do medievo não se aplicam. Mulheres e homens desempenhavam papeis independente do gênero, definir papeis para elas reforça o discurso misógino. 

 

Em relação ao livro didático percebe-se que ele foi construído sob uma mesma ótica da base, porém, analisando os elementos visuais, dá-se a entender que o período medieval foi exclusivo aos homens. Na visão de Pereira: “Tudo se passa como se toda a História entre os séculos V e XV estivesse submetida à doação de sentido ao sistema feudal. E, do mesmo modo, parece haver uma clara tentativa de forjar uma História do nascimento, do apogeu e da crise desse sistema. Esse eixo tem como sujeito principal a Igreja e a ela se agregaram outros sujeitos, que são basicamente, a nobreza e os camponeses. (...) o caráter global dessa explicação afasta da narrativa outros sujeitos, como as mulheres, os hereges, os professores, os filósofos, os jovens estudantes das escolas das universidades e outros – que criam significados diversos e, às vezes, desviantes, em relação ao chamado ‘domínio da igreja do nascimento até a morte dos indivíduos’. (...) também não permite referências a Histórias individuais, que poderiam dar corpo aos sujeitos do mundo Medieval”. (PEREIRA, 2017, p. 178). As narrativas presentes sobre este período da História são oriundas de uma narrativa global, totalizando com uma única lógica para os dez séculos, e que por este motivo acaba por negar a existência de outros temas, sujeitos e espaços geográficos, como é o caso da História das Mulheres no Medievo.

 

Pinheiro (2021) em sua proposta traz exatamente o que foi discutido anteriormente, ou seja, que as narrativas totalizantes acabam por tornar os sujeitos invisíveis também no livro didático, como é o caso das mulheres. Para tanto, ela inicia sua argumentação trazendo uma premissa já reafirmada aqui, a de que: “os manuais didáticos ganharam imensa relevância, sobretudo se pensarmos que há localidades em que ele é o único material disponível e acessível para o conhecimento escolar, fazendo com parte significativa dos professores de Educação Básica elabore seu plano de aula em cima do que é (re)transmitido através dele. Por esse enfoque, o livro didático interfere direta ou indiretamente na prática docente em sala de aula, direcionando-a ao que se refere à definição dos conteúdos que são trabalhados em sala de aula e até mesmo à escolha das atividades de aprendizagens e avaliações”. (PINHEIRO, 2021, p. 22).

 

Mas, ela vai mais além, expondo didaticamente os caminhos que levam o medievo dos humanistas quando se utilizou de palavras latinas que o definiram como período do meio. E inclusive, romper com a misoginia que legitima a invisibilidade das mulheres no livro didático. E orienta que: “cabe ao professor trabalhar, juntamente com os alunos, as possíveis rupturas e permanências a respeito do olhar pejorativo e até mesmo depreciativo sobre a presença feminina na Idade Média, pois há uma ampla produção acadêmica que traz à tona outros olhares e saberes demonstrando a contribuição feminina no período no que diz respeito aos aspectos educacionais, laborais, médicos, artísticos, mas que, contudo, permanecem longe do ensino de História Medieval em boa parte das escolas brasileiras”. (PINHEIRO, 2021, p. 25). Muitos, ao ler, podem questionar: mais uma vez o professor será responsável sozinho sem um aparato literário? Não, no decorrer de suas análises a autora nos alerta para darmos mais atenção aos textos complementares, ou até mesmo contrapontos que tornam possível a visibilidade de outras mulheres para além da figura de Joana D’Arc.

 


Fonte:http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf

 

Essa análise ajuda, inclusive, para que os profissionais da educação, em especial, os de História, exercitem-se para fazer uso destas mesmas estratégias para outros elementos presentes nas narrativas dos livros didáticos. Ou seja, os livros didáticos podem nos ajudar a descolonizar a História Medieval, e mesmo com poucos elementos sobre a temática, instiga ao profissional a buscar outros recursos, tais como, fontes, imagens, entre outros, para dialogar com os textos complementares, ou até mesmo com o texto de apoio ao professor. Os livros didáticos também são importantes até mesmo como objetos de análises da escolha dos próprios livros didáticos das redes, já que até então as redes públicas possuem esse privilégio de escolha para adotar tal coleção ou não em seu sistema de ensino.

 

E sempre a escolha é alvo de crítica de muitos profissionais: mas, será que eles fazem a fundo essas análises para escolhê-lo? Isso também deve ser

 

 pauta dos debates atuais sobre a História do medievo e o livro didático, pois, cada vez mais é observado que é: “necessário trabalhar com os alunos alguns conceitos antes mesmo de adentrar na temática ‘feminino Medieval’, como, por exemplo, misoginia, patriarcado, matriarcado, feminismo, gênero, mas, tais conceitos e discussões teriam que ser adequados para um público na faixa etária de onze, doze anos, em processo de formação, e que, por isso, necessitaria de tato e um bom conhecimento do seu público. Digo isso porque ao longo dos tempos, tem havido problemas nas escolas no que se refere a esses conceitos, sobretudo, se a escola estiver inserida em comunidades com forte apelo religioso. Há muito material disponível, com trabalhos interessantes sendo produzidos por mulheres sobre mulheres e, ainda assim, os autores listados preferiram trabalhar com os convencionais, corroborando para o acirramento da misoginia e preconceito que permeia esse período e, que parece, está retomando com todas as forças nos dias de hoje, realçando um obscurantismo enorme, mesmo que as pesquisas historiográficas venham apontando em outra direção”. (PINHEIRO, 2021, p. 36-37).

Este também é um dos desafios, além da própria habilidade intelectual de cada professor conduzir estas temáticas, há ainda dificuldades em romper com os valores presentes em cada comunidade escolar. A autonomia intelectual do professor precisa ser considerada, reverberada e acima de tudo concretizada nas salas de aulas. O professor é ator de sua prática. E acima de tudo, em especial aos professores de História, é a ideia de como o “passado que deve impulsionar a dinâmica do ensino-aprendizagem no Ensino de História é aquele que dialoga com o tempo atual.” (PINHEIRO, 2021, p. 38). Portanto, a medida em que os agentes da História aproximam o passado do presente, mais consciência histórica e de formação cidadão constrói-se.

 

Pensar nos debates atuais sobre o uso do livro didático e principalmente no contexto da BNCC, que nos amarra, limita nossa atuação. E mesmo mencionando como uma das competências trabalhar o papel da mulher Medieval, observamos aqui que poucos são os livros didáticos abertos ao novo, ou seja, a dar visibilidade a sujeitos por anos invisíveis na História Medieval escolarizada em nossas redes públicas e particulares.

 

O resultado disso na prática foi a aprovação de materiais didáticos que pouco se adequaram a base, o exemplo prático foi o de atender o item objetos do conhecimento sobre a inserção da mulher, no caso do livro escolhido pela rede de Juazeiro, a coleção História Sociedade & Cidadania, colocou apenas textos complementares sobre a mulher e no material do professor sugestões de leituras, estes textos complementares são partes acessórias às narrativas históricas presentes nos livros didáticos. E assim mais uma vez o livro se manteve com um medievo predominantemente masculino inclusive em suas composições gráficas, a mulher é um ser invisível aos materiais didáticos.

 

Referências biográficas

 

Lorene Rose Ribeiro dos Santos é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina). Recentemente defendeu a dissertação intitulada “A História Medieval entre o livro didático e a BNCC” no PPGFPPI sob a orientação do Prof. Dr. Luciano José Vianna.

 

Referências bibliográficas

 

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

 

BITTENCOURT, Jane. A Base Nacional Comum Curricular: uma análise a partir do ciclo de políticas. V Educere. Anais eletrônicos do XIV Congresso Nacional de Educação, 16 a 19 de setembro de 2019. Formação de professores: diálogos. 2019, p. 553-569. Texto disponível em: https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/24201_12678.pdf

 

LIMA, Douglas Mota Xavier de. Uma História contestada: a História Medieval na Base Nacional Comum Curricular (2015-2017). Anos 90. Revista do Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vol. 26, p. 1-21, 2019.

 

PEREIRA, Nilton Mullet. A invenção do medievo: narrativas sobre a Idade Média nos livros didáticos de História. In: Livros didáticos de História: entre políticas e narrativas. Helenice Rocha, Luis Reznik, Marcelo de Souza Magalhães (Orgs.). Rio de Janeiro: FGV, 2017, p. 169-184.

 

PINHEIRO, Mirtes Emília. Desafios e perspectivas: o enfoque sobre o feminino Medieval no ensino fundamental. In: VIANNA, Luciano José (Org.). A História Medieval entre a formação de professores e o ensino na Educação Básica no século XXI: experiências nacionais e internacionais. Rio de Janeiro: Autografia, 2021. Formato: ePUB.

 

RAMOS, Matheus Duarte. Medievalismo nas aulas de História: como o Medievalismo pode servir para o entendimento da alteridade nas aulas de História. Monografia apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de História. Orientada pelo professor Dr. Nilton Mullet Pereira. Porto Alegre, 2021.

6 comentários:

  1. Primeiramente gostaria de parabenizá-la pelo artigo, principalmente porque você traz questionamentos cotidianos e propostas de trabalho com a temática Mulheres no Medievo no chão da escola. No entanto, tendo em vista que essa temática é trabalhada a priori com as turmas de 6º Ano do Ensino Fundamental, gostaria de saber quais estratégias ou dinâmicas você tem utilizado para abordar assuntos como: misoginia, patriarcado, matriarcado, feminismo e questões de gênero para este público?

    Desde já grata,
    Joelândia Nunes Ulisses de Oliveira

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pelo seu comentário. Uma das estratégias em que mais utilizo é o uso de memes sobre a temática Medievo e História das Mulheres, este recurso facilita as discussões em torno do desenvolvimento do pensamento crítico do estudante. Além disso, faço uso de textos complementares com trechos e peço-lhes que retratem em desenhos sobre o que foi lido e estudado.

      Excluir
  2. Adelidia Maria Rodrigues13 de setembro de 2022 às 21:16

    Excelente texto! Coloca questões fundamentais para o ensino de História Medieval. Sabemos que a BNCC se trata de uma base para a construção dos Currículos dos estados e municípios. Nesse sentido alguns conteúdos que aparecem minimizados no próprio documento influenciam como esses conteúdos irão parecer nos livros didáticos, e podem influenciar como esses conteúdos também irão aparecer na construção dos currículos. Quais pontos destacaria como possíveis caminhos para enfrentamento no dia dia do professor de História, na tentativa de abrir mais espaço na discussão de temáticas, possibilitando discussões sobre as mulheres no Medievo a partir de uma visão mais ampliada?
    Parabéns pelo trabalho!
    Adelidia Maria Rodrigues

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pelo comentário. Acredito que o primeiro passo para o professor é ler a base no tocante ao componente curricular que te pertence, a partir disso perceber as ausências e abordá-las segundo a sua concepção de educação, o caminho para mim sempre será o da autonomia do professor para que ele não caia na armadilha de ser tarefeiro e cumpridor de programas. Costumo sempre impor minha autonomia intelectual na minha prática, mesmo tendo órgãos que me regulamentam eu só compartilho conhecimentos com os estudantes que considero necessários para que eles sejam críticos e conscientes de sua cidadania. Muitos valores que chamamos de ocidentais foram cristalizados no Medievo, principalmente sobre as questões femininas, e é preciso retirá-las do apagamento, do silenciamento e dar voz, a sala de aula é um lugar importante para isso também.

      Excluir
    2. Muito obrigada, Lorene pela sua resposta!

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.