José Carlos da Silva Ferreira

A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO LIVRO O DECAMERÃO (1348-1353) DE GIOVANI BOCCACCIO (1313-1375) 

 

José Carlos da Silva Ferreira

 

Introdução


O objetivo principal desta pesquisa é aproximar-se à História das Mulheres no Medievo enquanto campo histórico para compreender e contribuir com a historiografia recente do mesmo. Fazemos uso do livro Decamerão, escrito entre 1348-1353 por Giovani Boccaccio. Nosso recorte principal visa identificar a representação do mundo feminino nesta obra em termos sociais, com o objetivo de apresentar um mundo feminino em sua diversidade. Para isso, construímos uma revisão bibliográfica com as principais autoras do movimento da história das mulheres a fim de especificar este campo de estudos.

 

O surgimento do campo de estudos história das Mulheres não é um acontecimento isolado. Desde os séculos anteriores, as mulheres lutavam por reconhecimento, muito embora fossem censuradas de modo proposital. No início do século XX, as sufragistas lançaram as bases para o movimento feminista, o qual emergiu nos anos de 1960 voltado para as demandas sociais para o público feminino. Assim, intelectuais e ativistas feministas iniciaram a construção de uma nova história que incluísse nas suas narrativas as mulheres silenciadas há séculos e propositalmente esquecidas (SCOTT, 1992).

 

Dentro desse contexto, devemos destacar autoras que não apenas vivenciaram o período, mas também escreveram sobre este advento feminino. Joan Scott, por exemplo, apresenta a História das Mulheres como um movimento no qual a política esteve na base da sua consolidação. Scott destaca o início do movimento (na década de 1960) e um dos seus primeiros impasses: se desvincular, ou pelo menos ficar mais independente, do cenário político. Para a autora, com essa separação a História das Mulheres expandiu seus objetos de estudo, suas discussões e passou a documentar a vida das mulheres no passado, tornando-se um campo com mais vigor acadêmico (SCOTT, 1992). Mesmo com esses impasses, o movimento que reivindicava a História das Mulheres também era político.

 

Joan Scott discorre sobre uma série de reivindicações, conflitos e leis que na década de 60 do século XX, nos Estados Unidos, inseriam, ainda que lentamente, as mulheres em postos acadêmicos. Assim, o movimento buscava completar uma lacuna que há tempos era evidente. Existia, portanto, um desequilíbrio social no qual as mulheres estavam em uma situação crítica. A história deveria ser reescrita, adicionando a História das Mulheres.

 

A ascensão da História das Mulheres deu espaço para discussões mais profundas sobre a ausência delas da narrativa histórica durante todo esse tempo. Michele Perrot afirma que “escrever a história das mulheres é sair do silêncio em que elas estavam confinadas” (PERROT, 2017, p. 17). Mais do que isso, o silêncio das mulheres era proposital, pois “em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. É a garantia de uma cidade tranquila. Sua aparição em grupo causa medo.” (PERROT, 2017, p. 17).

Sem espaço, as mulheres não eram vistas: “A presença da mulher foi sempre complemento da presença do homem. O protagonismo feminino se mostrava inexistente. Os nomes delas eram removidos, pois já aviam os nomes dos homens como principais. Por tudo isso, os relatos delas eram ignorados, pois são uma leve sombra dos homens” (PERROT, 1997, p. 22). Assim, escrever uma história das mulheres hoje é romper com o ciclo de silêncio que durante muito tempo foi gritante, em termos historiográficos.

 

Por efeito da historiografia do século XIX, os documentos considerados históricos não apresentavam outra vertente senão a política. Em um debate mais específico, é possível observar que, do ponto de vista pedagógico, esse pensamento ainda pode ser percebido em alguns livros didáticos, muito embora isso venha mudando gradativamente. A historiografia mudou paulatinamente quando a Escola dos Annales, que iniciou em 1929, possibilitou essa ampliação das fontes e discussões que a História das Mulheres se beneficia.


O Decamerão e os aspectos


O Decamerão, escrito entre 1348 e 1353, ou seja, bem próximo à chegada e disseminação da peste em Florença, foi escrito pelo autor italiano Giovanni Boccaccio quando este estava em refúgio em Fiésole, justamente por conta da peste. O contexto no qual ele estava inserido era, portanto, de certa complicação social: uma grande fome e uma pandemia assolavam a região. A situação de caos descreve bem o que a sociedade florentina do século XIV passava.

 

O livro é composto de cem novelas ou histórias que são contadas em dez dias por dez personagens, sendo estes três rapazes (Dioneio, Pânfilo e Filóstrato) e sete damas (Fiammetta, Pampineia, Laurinha, Elisa, Emilia, Filomena e Neífile). O objetivo do livro, segundo o autor, era oferecer deleite e/ou alento para as mulheres que ficavam em casa melancólicas e solitárias (BOCCACCIO, 2018, p. 23). Nesse primeiro momento, podemos observar que se trata de uma obra escrita para as mulheres e na qual elas são personagens que narram em maior número.

 

Em termos de pesquisa voltada para o contexto feminino, a obra de Boccaccio apresenta uma possibilidade considerável, uma vez que sete das dez personagens da obra são compostas por mulheres. A obra de Boccaccio, que é influenciada e tem relação com a Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321), traz à tona a condição feminina em seu período, e as personagens que são representadas apresentam temas voltados para o amor, a moralidade, além de apresentar uma visão “realista, plural e crítica da sociedade de sua época”. E, devido a esta pluralidade, característica da obra de Boccaccio, e também devido ao fato de que a maior parte das novelas são apresentadas por mulheres, e, além disso, que seu “público-alvo” são as mesmas (ALMEIDA, 2009, p. 104), é que analisaremos esta obra a partir da perspectiva da representação feminina.

 

É importante fazer uma problematização ao fato de que Boccaccio descreve as mulheres como “tristes” e “melancólicas”. Por vezes, essa é a representação mais comum que se faz de mulheres no Medievo. A própria Idade Média é na maioria das vezes retratada como obscura e violenta. Afirmar isso é negar que muitas mulheres tinham suas vidas movimentadas entre cortes e trabalhos para o sustento da casa. É verdade que poucas tinham acesso às letras, como Cristine de Pizan, autora de A cidade das damas, porém, essa retratação apaga a vida movimentada que era o Medievo.

 

O propósito de observar o Medievo através dessas representações requer bastante cuidado, pois, segundo Rachel Soihet “a escassez de vestígios acerca do passado das mulheres produzidos por elas próprias, constitui-se num dos grandes problemas enfrentados pelos historiadores” (2011, p. 282). Com isso, muito do que se sabe sobre as mulheres no período Medieval são apenas vestígios. Além disso, “encontram-se mais facilmente representações sobre a mulher que tenham por base discursos masculinos determinando quem são as mulheres e o que devem ser”, complementa Soihet (2011, p. 282).

 

Entretanto, Boccaccio, ainda que fosse um homem burguês e letrado, escreveu sobre as mulheres. Essa narrativa pode fornecer vestígios aproximados sobre como viviam as mulheres em um período histórico marcado pela hegemonia cristã e masculina. No entanto, nem mesmo esse autor é isento de crítica, pois sua representação também obedece a um discurso. Por isso, lembramos a Roger Chartier quando ele afirma que “as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros.” (1988, p. 17). Neste sentido, nos apoiaremos nas perspectivas de Soihet e de Chartier para nos aproximarmos brevemente da representação feminina feita por Boccaccio em sua obra.


Breve análise das representações femininas presentes no Decamerão: alguns exemplos

 

No proêmio da obra, Boccaccio afirma que “Em socorro e refúgio daquelas que amam, é que escrevo (porquanto, para as outras, bastam a agulha, o fuso e a roca). O que escrevo são coisas contadas, em dez dias, por um grupo honrado de sete mulheres e de três moços, na época pestilenta da passada mortandade levada a cabo.” (BOCCACCIO, 2018, p. 23) Analisando esta passagem, observamos primeiro a restrição da leitura para um grupo seleto de mulheres. Este grupo no fim da frase é categorizado por “honradas mulheres”. Por outro lado, o grupo das mulheres sem leitura fica restrito ao trabalho manual, colocado como o uso da agulha para a costura, do fuso e da roca para fiar.

 

Na continuidade da obra, e a ainda falando das mulheres, o autor caracteriza as sete personagens que são narratárias. Para melhor compreender como Boccaccio construiu suas personagens femininas, utilizo da própria palavra do autor, quando afirma: “Elas tinham acabado de ouvir, em trajes lúgubres, como para aquela quadra se indicava, os ofícios divinos. Todas estavam ligadas umas às outras, ou por amizade, ou por vizinhança, ou por parentesco. Delas, nenhuma havia transposto o 28º ano de idade, nem era menor de 18. Todas eram ajuizadas e de sangue nobre; belas de formas, prendadas de costumes, e de comportamento honesto” (BOCCACCIO, 2018, p. 38-39).

 

Observando esse trecho do livro, percebemos que o lugar onde estavam as moças, a Igreja, devido a peste, estava com grande fluxo de celebrações fúnebres, pois é deduzível que o dia e horário e as vestimentas nos dão pistas que elas estavam em mais uma exéquias. É importante destacar o sentimento de saturação sobre o contexto. Assim, as sete damas conversam entre si a fim de saírem daquele lugar. Considerando a intensa utilização da ironia no livro, podemos também associar a retirada das moças da Igreja como uma metáfora para o autor dizer que o contexto no qual ele estava inserido.

 

Prosseguindo com nossa análise, é interessante destacar que todas elas estavam ligadas de alguma forma. Considerando, ainda, que todas eram moças nobres, fica evidente que o parentesco e a nobreza eram algo muito valorizado no Medievo. No entanto, é necessário lembrar que o autor produziu o livro com uma linguagem irônica e sagaz. Assim, essa representação de uma nobreza respaldada por vínculos familiares e sociais, logo depois será redesenhada com histórias que narram pessoas nobres se relacionando com pessoas de grupos sociais não pertencentes à nobreza.

 

Além das personagens que são narratárias, as mulheres que aparecem na 4ª jornada merecem uma análise mais detalhada. A 4ª jornada, que no livro é narrada sob o reinado de Filóstrato, tem como tema que “se fala daqueles cujos amores tiveram final infeliz” (BOCCACCIO, 2018, p. 351). Nesta jornada, a maior parte dos personagens que sofrem são mulheres. No entanto, o que nos interessa saber é qual a reação das mulheres perante esse sofrimento. Exemplificando, a primeira novela dessa jornada fala sobre como o “Tancredi, príncipe de Salerno, mata o amante da filha; e manda à filha o coração dele, numa taça de ouro. A filha põe água envenenada, na taça, sobre o coração, e bebe. E assim morre”. (BOCCACCIO, 2018, p. 365).

 

Com uma história tão trágica para a filha do príncipe, podemos também deduzir como era a vida das mulheres (e também a forma que o autor representou a condição de ser mulher na Idade Média). Em outro fragmento da obra isso fica evidente. Ao falar do amor e ciúme paternal do príncipe sobre a filha, a história narra que “em consequência deste enternecido amor [de Tancredi pela filha], ele não queria nem pensava em separar-se dela; e, embora ela já houvesse passado, de vários anos, a idade de casar-se, ele não a induzia a escolher marido”. A figura feminina causava medo na sociedade. Por isso, a aparição das mulheres em público era sabotada pela cultura patriarcal (PERROT, 1997).

 

O caso da filha do príncipe não é único nesta jornada. Lisabetta, uma personagem da quinta novela também passa por algo semelhante. Porém, a figura patriarcal se concentra nos seus irmãos. Na história, “Os irmãos de Lisabetta matam o amante dela; o morto aparece-lhe em sonho, e mostra-lhe o lugar onde está soterrado. Às escondidas, a moça desenterra a cabeça do amante; coloca-a num vaso de terracota de manjericão; sobre esse vaso, passa a chorar todos os dias, durante uma hora cada dia; os irmãos tiram-lhe o vaso; e, pouco depois, ela morre de dor”. (BOCCACCIO, 2018, p. 410).

 

A presença masculina na vida da personagem da história é perceptível em um trecho no qual os irmãos ainda não a haviam casado. Por isso, o autor diz que ela era uma “moça muito bonita e muito bem-educada; fosse lá por que razão fossem, eles ainda não a haviam casado.” (BOCCACCIO, 2018, p. 410). A imposição moral dos irmãos contra a irmã, no decorrer da novela, foi a responsável por matar o amante (namorado) e a própria Lisabetta.

 

Perspectivas para o uso da fonte em pesquisas históricas

 

Abordar conceitos como feminismo, misoginia dentro do contexto histórico da Idade Média não é tarefa fácil. Os cuidados que o historiador deve ter com o anacronismo o fazem ter receio de cometer equívocos. No entanto, atualmente há uma crescente necessidade de se falar sobre a História das Mulheres na formação de professores. Hoje, com o uso em massa das redes sociais, falar sobre a História das Mulheres na sala de aula requer cuidados e também facilidades.

 

A problematização e o cuidado com as generalizações têm que ser intermitentes. Assim, do ponto de visto histórico, não podemos falar em uma unicidade feminina no Medievo, período de mais de mil anos. Além disso, um Medievo baseado no recato e solidão feminina deve ser rediscutido, pois elas estavam presentes na agricultura, nas feiras e em outras atividades, inclusive nas atividades literárias (PERNOUD, 1997). Infere-se que nem todas as mulheres tinham acesso às letras, mas, se isso é verdade, por qual motivo Boccaccio dedicou seu livro justamente às mulheres em 1348?

 

Portanto, é necessário estar atento e deixar evidente tais questões, a fim de não reproduzir o discurso da Idade Média unicamente masculina, como dizem os poucos relatos. Assim, construir uma nova história das mulheres é também reconstruir concepções e conceitos masculinos que duraram muito tempo na nossa sociedade.

 

Considerações finais

 

O Decamerão, enquanto fonte primária, carrega consigo aspectos do seu contexto, como os cavaleiros, as ordens religiosas, a peste e as mulheres. As representações sobre as mulheres são importantes fontes de estudo, pois elas estão fundamentadas no caráter verossímil da obra, uma vez que “as referências do universo narrado, embora sejam principalmente literárias" ligam-se ainda ao cotidiano do autor e a realidade das cidades-estados italianas daquele período.” (CAVALLARI, 2010, p. 10).

 

Desse modo, a história das mulheres também pode contribuir para o ensino e a aprendizagem que dá voz as mulheres por séculos esquecidas na história. Concluindo, podemos destacar que a história das mulheres é um importante campo de saber histórico que pode auxiliar o pesquisador/professor a descobrir e a compreender melhor sobre as mulheres que não aparecem nos documentos oficiais, importante aspecto a ser tratado na formação docente em História.

 

Nesse sentido, escrever uma história das mulheres é lançar luz sobre as sombras historiográficas nas quais elas estavam. O protagonismo feminino deve estar cada vez mais evidente na escrita da História, pois, assim, as mulheres poderão escrever suas próprias histórias. Com o Decamerão, encontramos uma possibilidade de desconstruir um pouco dessa visão patriarcal do medievo.


Referências biográficas


José Carlos da Silva Ferreira é graduando no curso de História da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina). Atualmente desenvolve sua monografia sob a orientação do Prof. Dr. Luciano José Vianna, cujo título é “A história das mulheres no Medievo: a representação feminina no Decamerão (1347-1353) de Giovanni Boccaccio (1313-1375).”


Referências bibliográficas


ALMEIDA, Ana Carolinea Lima. A exemplaridade nas representações do feminino no final da Idade Média – o exemplo do Decamerão e do De mulieribus claris de Boccaccio (Florença – século XIV). 2009. Dissertação de Mestrado. Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, 2009.

 

BOCCACCIO, Giovanni. O Decamerão. Tradução Raul de Polillo. 2ª Ed. Rio de Janeiro, NovaFronteira, 2018.

 

BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia.Trad. Nilo Odalia. São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997.

 

CAVALLARI, Doris Natia. A palavra astuta: as estratégias discursivas e a modernidade do Decameron de G. Boccaccio. BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1, n. 4, p. 6-16, 2o sem. 2010.

 

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: DIFEL,1988, p. 13-28.


PERNOUD, Régine. Luz sobre a Idade Média. Portugal: Publicações Europa-América, 1997.

 

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução Angela M. S. Côrrea. São Paulo: Contexto, 2007.

 

SCOTT, J. História das Mulheres. In: BURKE Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.

 

SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. 1.ed. Rio de Janeiro: Campus,1997.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.