Georgiane Garabely Heil Vázquez e Angela Ribeiro Ferreira

MULHERES APRESENTAM MULHERES: EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA EM DIÁLOGO COM OS ESTUDOS DE GÊNERO

 

Georgiane Garabely Heil Vázquez

Angela Ribeiro Ferreira

 

Notas Preliminares

 

Os Estudos de Gênero e suas variadas áreas de pesquisas tem demonstrado amplas possibilidades de contribuição para o campo da historiografia e do ensino da História. A partir das décadas de 1950 e 1960 outras abordagens históricas vão contribuir de maneira significativa para os futuros estudos sobre gênero, infância, diversidade e subjetividades. Áreas como a Demografia Histórica e a História da Família e suas descobertas sobre a sexualidade e as sensibilidades do passado em relação ao casamento, às crianças e à morte desempenharam funções primordiais para o impulso historiográfica chamado inicialmente de “história das mulheres” e posteriormente “história das relações de gênero”.

 

A história da sexualidade e a história das mulheres, por sua vez, lançaram novas luzes sobre práticas, representações e sensibilidades envolvendo grupos sociais marginalizados e destituídos de memória. A partir daí os sentimentos, as subjetividades e as intersubjetividades passaram paulatinamente a fazer parte das reflexões históricas. Esta nova frente só começou a ser aberta por historiadores ligados à Nova História, como George Duby e seus importantes estudos sobre o amor, Elizabeth Badinter e a reflexão em torno da desnaturalização do amor materno e Anne Vincent-Buffault e seu estudo sobre as sensibilidades e emoções (DUBY 1989, BADINTER, 1985; BUFFAULT, 1988). Portanto, desde o final da década de 1960 a escrita da História se modifica completamente. Primeiro, pelo impacto das transformações operadas pela nova história social e a sua perspectiva de escrever a história “vista de baixo”, do ponto de vista das pessoas comuns, dos operários, dos camponeses, etcO segundo motivo foi provocado pelo movimento político identitário dos negros, das mulheres e das chamadas minorias, movimento este engajado na construção de uma memória a contrapelo, de uma memória que fortalecesse a coesão identitária dos grupos e movimentos sociais. É no interior de um amplo movimento político de afirmação das identidades que a produção da história das mulheres se consolida ao longo das décadas de 1970 e 1980 na Europa e nos Estados Unidos inicialmente.

 

Os movimentos feministas se proliferavam e a passos largos caminharam das ruas e marchas em direção ao “mundo acadêmico”, chegando até a escrita da história. Ao chegarmos à década de 1980 as historiadoras feministas começam a problematizar as particularidades que existiam entre elas próprias. Pedro (2005; 2011) argumenta que as negras particularmente questionaram o gesto excludente da escrita da história das mulheres, revelando as fraturas internas não só da história, mas do próprio feminismo acadêmico ao mostrar as armadilhas e ilusões da categoria Mulher. As diferenças assaltavam a diferença sexual e revelavam como havia muito pouco a unificar esta categoria. Feministas como Angela Davis, bell hooks, Patrícia Collins e Elsa Barkeley Brown colocaram o dedo na ferida ao dizer que as mulheres não viviam da mesma forma a experiência de ser mulheres. Outras variáveis precisavam ser levadas em consideração, inclusive para se entender as exclusões presentes nas próprias narrativas feministas. É neste contexto que chegamos à questão do uso da palavra gênero no final da década de 1980. Quando Joan Scott publicou seu famoso artigo na American  Historical Review em 1986, ela tinha como objetivo argumentar que a imensa produção da história das mulheres havia chegado a um impasse: ou ficava numa categoria suplementar ao mainstream historiográfico, ou forçava uma transformação no interior da disciplina e do conhecimento histórico. Defendendo a segunda posição Scott então propõe o gênero como categoria de análise e não como um tema ou um objeto. Se o gênero é um dos princípios organizadores da sociedade, da cultura e da linguagem e se o gênero é uma experiência para todas as pessoas, então, devido a esta universalidade não poderia ser negligenciado na produção do conhecimento histórico e no ensino de história.

 

O uso da palavra gênero para se referir a uma construção histórica e cultural fundada na percepção da diferença sexual e como uma organização do poder, visava romper com a ilusão identitária da história das mulheres, mas igualmente com outras ilusões, como a neutralidade, a objetividade, a racionalidade, a uniformidade linear da política e das instituições. Na formulação teórica proposta por Scott o gênero não é um relato restrito das relações sociais entre homens e mulheres, mas uma forma de saber, uma configuração das experiências subjetivas e uma forma de poder, e que abrangem necessariamente as diversidades sexuais e éticas.

 

Amparadas/os nessas discussões e nesse campo de pesquisa, o Laboratório de Estudos de Gênero, Diversidade, Infância e Subjetividades (LAGEDIS), vinculado a Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual de Ponta Grossa- PR, promoveu debates e encontros científicos com a comunidade universitária e a sociedade civil organizada a fim de oportunizar a ampliação dos conhecimentos históricos sobre esse campo da historiografia, ou seja, uma proposta de extensão universitária em que mulheres professoras/pesquisadoras, apresentavam a obra e as principais ideias de outras mulheres em diferentes áreas do conhecimento. Tal proposta se justificou por entende-se a necessidade do debate sobre gênero, diversidade e direitos humanos na educação superior e também na educação básica é um dos eixos centrais para consolidação de uma escola e universidade de qualidade, com foco no ser humano e respeito à diversidade. E é sobre essa proposta de extensão que esse texto trata.

 

Mulheres apresentam mulheres: a extensão universitária dialogando com Estudos de Gênero

 

Segundo Ferreira e Vázquez (2021) o LAGEDIS-UEPG é um programa de extensão universitária, registrado na PROEX-UEPG desde 2019. Possui diversos projetos e eventos vinculados e busca sempre um diálogo profícuo entre ensino, pesquisa e extensão. Atua principalmente nos cursos de licenciatura e bacharelado em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa, mas também é frequentado por estudantes de outros cursos da instituição como Direito, Pedagogia, Letras, Serviço Social, etc. Em linhas gerais os principais objetivos de criar e manter um laboratório extensionista voltado exclusivamente para os estudos de gênero e diversidade são: Viabilizar projetos de extensão que dinamizem ações nas áreas de estudos de gênero, direitos humanos e diversidades étnicas e sexuais, por meio de projetos voltados a um ou outro ponto ou que tratem deles numa perspectiva integrada entre ensino, pesquisa e extensão com a comunidade externa, em especial, trabalhadores/as da educação básica; Integrar organicamente docentes e acadêmicos(as) comprometidos(as) com a realização de projetos (Trabalhos de conclusão de disciplina, de curso, iniciação científica, especialização e mestrado) visando ao aperfeiçoamento da formação profissional graduado pela UEPG, para uma época de grandes mudanças no plano do conhecimento histórico, que tem requerido cada vez mais o enfoque Interdisciplinar; Criar condições para que profissionais de História habilitem-se no sentido de prestar serviços à comunidade docente das redes pública de ensino, na educação básica, ligados à discussão em torno da ampla área de estudos de gênero, diversidade, e direitos humanos, ou seja, formar estudantes de forma plena numa interface constante entre os saberes universitários e as questões e problemas da comunidade externa, com enfoque na temática de gênero.

 

O presente evento de extensão tratado neste texto teve por objetivo central promover o debate sobre história das mulheres e os estudos de gênero nos diferentes campos das ciências humanas e sociais. Para atingir tal finalidade foram organizadas palestras durante o ano letivo de 2018 com pesquisadoras, mestras e doutoras, que apresentaram obras, teorias e militância feminista de mulheres que se destacaram em suas respectivas áreas de produção cultural e acadêmica. Como objetivo específico, esse ciclo de palestra, em sua primeira edição, dialogou de maneira interdisciplinar com a geografia, as letras e a psicologia, articulando um debate profícuo entre o campo de conhecimento histórico, os estudos de gênero, e tais áreas do saber. Foram abordadas as produções de literatas sul africanas, as obras da proto feminista inglesa Mery Wollstonecraft, a filósofa Judith Butler em diálogo com a Teoria Queer, a obra psicanalista brasileira Nise da Silveira. Também foram apresentadas obras e estudos sobre mulheres artistas, em especial pintoras paranaenses, e mulheres do estado do Paraná que atuaram na luta armada contra a Ditadura Militar Brasileira.

 

Com o intuito de dar visibilidade a um dos debates mais atuais na sociedade brasileira: os Estudos de Gênero, o evento buscou parcerias com outras instituições de ensino superior da cidade e teve a participação de estudantes de diferentes cursos, inclusive das clamadas “ciências duras” como as engenharias. Segundo Pedro (2005), esse campo de pesquisa surgiu articulado com a militância feminista, a história das mulheres, e que já está consolidado nas universidades nacionais e estrangeiras. Interdisciplinar por essência, os estudos de gênero, possuem a capacidade de agregar pesquisadoras e pesquisadores de áreas variadas num diálogo profícuo e inovador com inúmeras outras temáticas, destacando-se nesse ciclo de palestras a produção cultural e profissional de mulheres, que muitas vezes é apagada da narrativa histórica. As pesquisas dentro dos estudos de gênero, enquanto análise histórica, carregam em seu bojo a problematização não somente das relações sociais entre os múltiplos gêneros, a compreensão da construção de identidades e suas formas de reprodução na sociedade em diferentes culturas e contextos, como também entendem o gênero como uma organização social que tem direcionado relações de poder, sistemas de dominação, restrições de sujeitos (as) a espaços e funções, exclusão de protagonismo feminino e inúmeras outras desigualdades. Nesse sentido, possibilitar espaço dentro e fora do mundo acadêmico, para que pesquisadoras mulheres apresentem suas pesquisas e estudos sobre outras mulheres, foi e é, em essência, romper com desigualdades e dar protagonismo a sujeitas antes marginalizadas ou deixadas em segundo plano.

 

É importante mencionar que esse projeto também contou com a participação da sociedade civil organizada. Estudantes de educação básica participaram como ouvintes de algumas palestras, membros de movimentos sociais também estiveram presentes, fortalecendo a ligação entre a universidade e a comunidade.

 

Para tratar de escritos negras da África do Sul, foi convidada a professora Joana Darc Pupo, docente no curso de letras da UEPG e pesquisadora na área. Pupo desenvolveu seu doutorado analisando a obra de diversas mulheres sul-africanas que romperam com estigmas de raça e gênero e construíram uma produção intelectual no campo da literatura. Com esta palestra os participantes puderam conhecer parte do campo literato da África do Sul e os nomes e obras de mulheres que compõem tal campo. Numa perspectiva decolonial, a atividade teve intenção de abordar empoderamento feminino e lutas de mulheres naquele país.

 

Para tratar de parte da obra da proto feminista inglesa Mery Wollstonecraft, foi convidada a professora Dra. Dulceli Tonet Estacheski, na época professora na Unespar- Campus União da Vitória. A obra de Mery Wollstonecraft é vasta e singular, contudo, ainda pouco conhecida do grande público em universidades brasileiras. Desta forma, a professora Dulceli deu enfoque central para o livro “Reivindicação dos Direitos da Mulher” e tratou do pioneirismo de Wollstonecraft na temática, abordando também aspectos da vida pessoal e profissional da autora.

 

Para tratar da obra de Judith Butler em diálogo com a Teoria Queer, foi convidada a professora Dra. Joseli Maria Silva, docente do curso de geografia da UEPG e uma das pesquisadoras pioneiras na área de geografias feministas. A palestra tratou das principais ideias de Butler e da “sacudida” que as obras dessa autora deu no campo dos estudos de gênero e feminismo, em especial por desnaturalizar uma série de conceitos e estereótipos ligados ao gênero. A ideia de performance de gênero também foi tratada e com isso os participantes tiveram a dimensão da pluralidade de teorias e interpretações que compõem os estudos de gênero na atualidade.

 

Sara Soriano, psicóloga e docente da Faculdade Santana de Ponta Grossa –PR, abordou a obra de Nise da Silveira e a revolução que esta psiquiatra promoveu em sua área. As possibilidades de pesquisa relacionando a História e a Loucura também foram levantadas, bem como documentação e fontes para o estudo de tal temática. Foi destacado o papel central que Nise da Silveira teve em sua área e a forma como revolucionou o tratamento das doenças mentais em sua época, assim como os desafios e preconceitos que enfrentou, tanto por sua condição de mulher como por sua ambição profissional e nova teoria.

 

A professora Cláudia Priori, da UNESPAR, tratou de sua pesquisa articulando a história e o mundo das artes. Deu nome, protagonismo e analisou diferentes mulheres pintoras no Paraná de fins do século XIX e início do século XX. Mulheres que muitas vezes foram completamente apagadas do cânone artístico, mas que possuem vasta obra, quadros com extrema qualidade técnica e expressão. Ao nominar e analisar a obra de pintoras paranaenses Priori possibilitou o contato dos participantes com a História da Arte e demostrou que ainda temos um longo caminho para conhecer e escrever a história das mulheres no Estado do Paraná.

 

Para finalizar, essa extensão universitária também abordou temas políticos e de militância. Para tratar de tal temática, foi convidada a professora Carla Conradi, da UNIOESTE, que apresentou e analisou a participação de mulheres paranaenses na luta armada contra a Ditadura Militar Brasileira. Seus sofrimentos, ideais políticos, prisões e até rompimentos familiares foram tratados nessa palestra, demostrando que mulheres paranaenses tiveram também ações centrais na luta contra a opressão estatal e lutaram por uma sociedade mais justa e democrática.

 

Considerações Finais

 

Este relato tratou da primeira experiência de extensão universitária vinculada ao LAGEDIS-UEPG. Nosso intuito foi demostrar que havia e há um amplo campo de pesquisas para serem desenvolvidas da área de estudos de gênero, diversidade e história das mulheres.

 

A opção pela realização de um ciclo de palestras que perpassou o ano letivo de 2018 na UEPG se deve pelo fato de que nossos/as estudantes tinham, até aquele momento, pouco contato com essas temáticas, pois o laboratório ainda estava dando seus primeiros passos na universidade. Além disso, foi uma forma de empoderar pesquisadoras ( as palestrantes) para destacar a importância de suas pesquisas e demostrar aos ouvintes como temos temáticas e ações voltadas para este campo e que devem ainda ser ampliadas.

 

Como saldo geral deste ciclo de palestras podemos mencionar que a participação da comunidade interna e externa à UEPG foi muito significativa e a avaliação geral dos participantes foi positiva. Além disso, essa primeira experiência de extensão auxiliou significativamente na consolidação do LAGEDIS, tanto no curso de história como em diversos outros cursos da UEPG. A extensão universitária é também um dos caminhos para aprimorar o ensino de história com novas possibilidades e uma formação mais coesa. Comunidade e universidade juntas debatendo gênero e diversidade, esse segue sendo o propósito do LAGEDIS.

 

Referências biográficas

 

Dra. Georgiane Garabely Heil Vázquez, professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG e professora do Mestrado Acadêmico em História ( PPGH-UEPG) e Mestrado Profissional em Ensino de História ( PROFHISTÓRIA-UEPG)

 

Dra. Angela Ribeiro Ferreira, professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Coordenadora do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História ( PROFHISTÓRIA- UEPG).

 

Referências bibliográficas

 

BADINTER, Elizabeth.Um amor conquistado. O mito do amor materno.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

 

BUFFAULT, Anne Vincent. História das lágrimas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

 

BUTLER, Judith. Cuerpos que importam: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paídos, 2002.

 

__________. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, Guacira L.O copo educado: pedagogia da sexualidade. 2ed. Belo Horizonte: Autentica, 2000.

 

DUBY, George.Idade Média, idade dos homens; do amor e outros ensaios.São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

 

FERREIRA, Angela. R.  VÁZQUEZ, Georgiane .G.H. . LAGEDIS - a construção de um laboratório sobre estudos de gênero e diversidade na História-UEPG. In: Édina Schimanski; Beatriz Gomes Nadal; Sandra Maria Scheffer. (Org.). UEPG: Cinco Décadas de Extensão. 1ed.Ponta Grossa: Editora UEPG, 2021, v. 1, p. 91-109.

 

PEDRO, Joana M. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. In:História. São Paulo, 24(1), p.77-98, 2005.

 

___________. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.Topoi (Rio J.)[online]. 2011, vol.12, n.22, pp.270-283.

2 comentários:

  1. O grupo LAGEDIS tem realizado constantes esforços de reflexão e análise dentro dos debates de gênero. Como pesquisadoras também na área de Ensino de História, de que maneira o LAGEDIS vem colaborando para os debates em torno de ensino de História e Gênero?

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    1. Georgiane Garabely Heil Vázquez16 de setembro de 2022 às 22:50

      olá Lorena. Muito obrigada pela pergunta. Recentemente o lagedis firmou parceria com o simdicato dos professores das escolas públicas do Paraná( APP Sindicato), estamos realizando entrevistas com professoras para registrar memórias da greve de 1988 em nosso estado e assim dar visibilidade à luta docente. Também realizamos cursos de extensão em gênero e diversidade para formação continuada de docentes da educação básica

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