Gabrielle Legnaghi de Almeida

PEREGRINAÇÕES DE UMA PÁTRIA: FLORA TRISTA E A FIGURA FEMININA NA SOCIEDADE PERUANA (1838)

 

Gabrielle Legnaghi de Almeida

 

Introdução

 

Publicado em 1838, a obra “Pérégrinations d’une paria”, traduzido para o português com o título “Peregrinações de uma Pátria” compreende um relato de viagem em território peruano entre os anos de 1833 e 1834. Flora Tristan (1803 - 1844) era de origem abastada, mas teve sua condição alterada com a morte de seu pai. Em 1833 viaja para Arequipa, no Peru, objetivando reivindicar uma herança. Em um cenário de pós-independência, Flora encontra uma sociedade marcada pelo patriarcado e com limitações para as mulheres. Envolvendo questões de gênero, a obra possibilita a compreensão do cenário peruano da época, evidenciando uma sociedade em que o homem possui extrema dominância, a subordinação e silenciamento das figuras femininas e, ainda, permite a compreensão das estruturas coloniais que sustentam o machismo na sociedade moderna e contemporânea. 

 

Desenvolvimento

 

Ao realizar uma viagem ao Peru em 1833 em busca de sua família paterna, a parisiense Flora Tristán tece uma narrativa sobre sua experiência no país. Expondo em seu diário de viagem diferentes situações que observou em terras peruanas. Com seu diário é possível identificar e analisar os traços da sociedade, que se mostra de caráter conservador e tradicionalista.

 

O atento olhar da autora se volta para a condição das mulheres da sociedade do país. Ela observa uma mulher descasada que vem de uma cultura onde o divórcio não era facilmente aceito, e que os direitos civis não são reconhecidos; evidencia sua situação irregular de herdeira ilegítima de seu pai hispano-peruano; um contexto em que ser mulher e escritora eram atividades destinadas somente aos homens; e ainda, de acordo com Flora, as origens infames da retrógrada cultura hispânica (TORRÃO FILHO, 2018, p. 2).

 

“Por autobiografía entendemos no sólo el relato de la vida, sino el proceso autoconsciente que enhebra desde la interioridad lo vivido para construirse al autorrepresentarse. Tristán busca limitar su relato a aquellos aspectos que tienen un valor universal y con ellos “espera influir sobre la opinión pública”. El esfuerzo autobiográfico es un volver a la propia vida para autodescubrirse. En el caso de Tristán nos encontramos no ante una autobiografía sino ante unas memorias porque la mirada de la escritora sobre los hechos externos prima sobre los internos” (GÓMEZ, 2005, p. 65).

 

Na sua condição de mulher divorciada, “descasada”, ela se vê na condição de “pária”, que corresponde a uma estrangeira em sua própria pátria em que nasceu. Em uma situação de extremo desamparo pela situação política e social do seu país (França), discriminada, sem reconhecimento, em que sua condição significa um verdadeiro tabu para a época. Porém, é nesse desamparo que sua ida ao Peru acontece, mas os traços de sua pequenez diante de uma sociedade enrijecida por valores conservadores permanecem, tanto quanto ou ainda mais fervorosos (MEDEIROS, 2020, p. 12). 

 

“Devido ao papel que tinham de consolidação do regime colonialista espanhol, as mulheres brancas eram mantidas na ignorância e afastadas de qualquer atividade produtiva e política. Não lhes restava outra escapatória além do" casamento ou do claustro", o que fazia da maior parte delas vítimas das convenções sociais” (AMARANTE, 2015).

 

Ao descrever uma conversa com sua prima nas páginas 11 e 12, a inferioridade figura feminina se evidencia, em que são colocadas em situações que comprometem sua liberdade. Prosseguindo o diálogo, sua prima descreve a situação das mulheres como escravas das leis e sujeitas a mil sofrimentos, e exclui Flora dessa realidade:

 

“[...] débill mujer, esclava de las leyes, de los prejuicios, sujeta a mil sufrimientos, con una debilidad sífica que la hace incapaz de luchar contra el menor obstáculo ?es usted quiene se atreve a avanzar semejante paradoja? !Ay, Florita! Se ve que usted no ha estado dominada por una familia altanera y poderosa, ni expuesta a la negra maldad de los hombres. Soltera, sin familia, usted ha sido libre em todas sus aciones, e dueña absoluta de si mesma [...]” (TRISTÁN, 1833, p. 11).

 

Sua prima prossegue detalhando a dura realidade das mulheres peruanas:

 

“[...] Casí todas, casadas muy jóvenes, han tenido sus facultades marchitas, alteradas por la opressión más o menos fuerte que sus amos han hecho pessar sobre ellas. Usted no sabe cuántos de estos penosos sufrimientos está uno obliga a ocultar a los ojos del mundo, a disimular aun en el interior y cómo paralizan e debilitan la moral de ser más felizmente dotados. Al menos, tales son los efectos que aquellos sufrimientos producen sobre nosotras, pobres mujeres, poco avanzadas em civilización [...]” (TRISTÁN, 1833, p. 12).

 

 

“Como lembra Cuche (1985, p. 102), a sociedade peruana era baseada num sistema de grandes plantações dirigidas pelos crioulos.  Nisso eles se opunham a outro grupo étnico, os negros, trazidos como escravos para trabalhar nestas plantações, bem como a outros negros alforriados que, em sua maioria, eram mulatos. Os índios, verdadeiros camponeses   do   Peru, eram   ainda   pouco   numerosos   na   zona   costeira, mas   bem representados em Arequipa, reduto dos Tristans, onde constituíam metade da população estimada entre 30 a 40.000   habitantes (TRISTAN, 1979). A classe crioula era extremamente hierarquizada, a elite sendo constituída pelos descendentes diretos dos conquistadores espanhóis.  É desta elite, da qual os membros da sua família eram representantes, que Flora Tristan se aproximou mais” (AMARANTE, 2015).

 

Mesmo com a independência peruana da Espanha, restou as instabilidades de uma pátria recém independente, e que ainda trazia consigo profundas marcas sociais e estruturais de uma colônia, baseado no modelo imposto pela Metrópole. Assim, a ideologia patriarcal importada da Europa solidificou-se durante o processo colonial, persistindo mesmo após a dissociação da Espanha. Prosseguindo como tema envolvendo os gêneros, é possível perceber uma visão um tanto idealizadora que sua prima tem da Europa, visto que posteriormente, Flora explica para a mesma que em terras europeias, as mulheres também passam por esse tipo opressão e submissão ao homem:

 

“[...] Prima, hay sufrimiento em donde hay opresión y opresión em donde el poder de ejercitaria existe. En Europa, como aquí, las mujeres están sometidas a los hombres y tienen que sufrir aún más su tirania. Pero em Europa se encuentra, más que acá, mujeres a que Dios há concedido suficientes fuerzas para sustrarse al yugo [...]” (TRISTÁN, 1833, p. 12).

 

Conversações como essas encontradas no diário de viagem de Flora Tristán, são ricas fontes para a compreensão da sociedade patriarcal dominante no Peru. Visto que a posição de inferioridade feminina, marca de uma tradição de submissão privação de liberdade explícita, enraizada e característica do século XIX. Essa passagem evidenciando a interação de Flora com sua prima é um claro exemplo de como era a idealização da Europa por quem nunca antes pisou no Velho Mundo. Ideias de progresso, avanços, inovações e modernidades são sedutoras, e cada um as interpreta de acordo com as suas próprias necessidades e demandas. Assim, a prima da autora apresenta em seu imaginário ideais que para ela são característicos de uma sociedade moderna, em que ela mesma se insere, esquecendo de que, no período, as estruturas sociais foram pensadas e executadas por homens, favorecendo-os em amplos sentidos.

 

 No seu diário de viagem, Flora Tristán observa traços que caracterizam a dinâmica social do Peru. Mesmo com a república recentemente instaurada, a parisiense destaca pontos que evidenciam os costumes e preconceitos coloniais, descrevendo situações que esses costumes se colocam à vista. Logo na página 6, Tristán descreve uma viagem realizada com seu primo, Manuel, onde os dois partem para Arequipa. Nessa viagem, segundo registros em seu diário, Manuel lhe apresenta diversas terras, e o mesmo, durante a conversação, expõe sua opinião referente aos homens ricos, e reconhece que os peruanos, por mais que no momento estejam vivendo em uma República, ainda apresentam traços e relações típicas do colonialismo:

 

“[...] Querida prima, nuestros parientes son los reyes del país. Ninguna familia de Francia, ni aún las de Rohan y de Montmorency tienen tanta influencia por su nombre o o su fortuna y, sin embargo, nos hallamos em uma república. !Ah! Sus títulos y sus inmensas riquezas pueden procurarles el poder mas no el efecto. Duros y pequeños como banqueros, nos incapaces de hacer uma acción que responda el nombre que llevan. [...]” (TRISTÁN, 1833, p. 6).

 

Ao chegarem na casa do tio de Flora, ainda na página 6, a mesma relata que fora recebida por muitos escravos que se encontravam na porta, o que evidencia a manutenção de uma sociedade baseada no trabalho escravo e que trata o negro com inferioridade. Outros episódios em seu diário também destacam essa característica colonial, como na página 13 em que descreve uma festa religiosa como uma farsa, e destaca que a Igreja pagava negros para representarem um papel. Episódio que pode ser entendido como traço que marca a suposta inferioridade do negro.

 

Outro costume observado por Tristán é referente à chegada de mulheres da alta classe social no Peru. Em que as mesmas têm que permanecer em casa, sem sair durante o primeiro mês que se encontram na nova cidade, a fim de esperar as visitas. Costumes como esse expressam claramente as características marcadas por uma sociedade que tem como base uma rigidez, formalidades excessivas e o resguardo da figura feminina, em que vivem em constante privação, até mesmo de suas vontades, em prol dos costumes ditados pelos homens.

 

Na página 8, Flora Tristán destaca características do seu tio, que podem ser entendidas novamente como resultado de uma sociedade patriarcal, “[...] mi tío, jefe de uma numerosa familia, relacionado por sus altas funciones y su mérito personal con todo cuanto el país encerraba de más distinguido don Pio gozaba de una fortuna colossal [...]’’ (TRISTÁN, 1833, p. 8).

 

As marcas das tradições religiosas e a conservação da igreja como elemento que se faz presente na sociedade também são apontadas por Tristán em diferentes trechos. Nesse contexto, e bem como o passado colonial das pátrias sul-americanas, teve como base o cristianismo, não somente na conversão dos infiéis indígenas nos primeiros momentos da conquista, mas também, serviu para consolidar as estruturas sociais vindas da Metrópole espanhola. Os destaques de Flora, como no episódio do terremoto na página 10, em que narra os negros saindo da casa e rezando. Ou nas festas religiosas, que a mesma afirma, na página 13, que as festas religiosas são a diversão do povo, caracterizando mais um forte traço do colonialismo, e que a religião ainda se mantém no cotidiano. E mais, em que muitas vezes a cultura nos nativos americanos se mesclaram com as influências europeias e africanas, em uma ampla rede cultural.

 

A leitura que Flora realiza não é meramente voltada para a religião, de forma despretensiosa, como era de constume em viajantes de tradição católica ou protestantes. Esses tinham o objetivo de narrar e descrever as cerimonias dos países americanos pautando-se em uma análise em que a religiosidade era uma aparência, e não um rito sagrado para quem os praticava, sem a verdadeira espiritualidade, em uma mescla de diversões mundanas com festas sacras (TORRÃO FILHO, 2018, p. 10). Ao longo de todo seu relato de viagem, é possível identificar que mesmo estando em uma república, os laços coloniais ainda não foram desfeitos, resultando em uma sociedade rígida, e tradicionalista, em que sua herança colonial baseada na Metrópole espanhola ainda se preserva.

 

Conclusão

 

A autora Flora Tristán é um sujeito moderno, em que sua identidade foi construída em concordância com o decorrer de sua vida. A concepção contemporânea de identidade como conceito histórico e sempre passível de mudança é própria de quem se coloca no centro de sua própria realidade. Assim, a autora, de maneira habilidosa, soube conduzir a narrativa de modo em que todas as discussões se voltassem para as suas próprias demandas, voltando, novamente, para ela o centro da narrativa (GÓMEZ, 2005, p. 66).

 

Sendo um texto autobiográfico, a narrativa compreende ao ideário da modernidade nos moldes europeus, mas que, em comparação com a sociedade peruana, torna-se um avançado esboço da construção da própria identidade feminina da autora. Com a obra da autora, é possível percorrer temas paralelos, como o próprio modelo literário utilizado, a formulação de uma identidade que rompe os moldes da sociedade em que se insere, como o novo ideário feminino da França pós-napoleonica se configura. Para além, o estudo envolvendo a obra de Flora contribui para as discussões envolvendo o patriarcado e a consolidação das estruturas sociais pensada apenas para os homens, possibilitando um paralelo com as diversas funções da sociedade contemporânea que, ao passar das décadas, foi destinando atividades tidas como masculinas para as mulheres.

 

Referencias Biográficas:

 

Gabrielle Legnaghi de Almeida. Graduada e Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá. Doutoranda em História (Universidade Estadual de Maringá).

 

Fonte:

 

TRISTÁN, Flora. Peregrinaciones de una paria (1833-1834). 1937.

 

Referências Bibliográficas: 

 

AMARANTE, María Ines. FLORA TRISTAN E OS RETRATOS DAS MULHERES LATINO AMERICANAS NO INÍCIO DO SÉCULO XIX. Revista Sures, n. 5, 2015.

 

CUCHE, Denys. Le Pérou de Flora Tristan: du rêve à la réalité. In: Un fabuleux destin. Flora Tristan. Dijon, 1985, p. 19-37.

 

GÓMEZ, Blanca Inés. Autobiografía y representación en Peregrinaciones de una paria de Flora Tristán Universitas Humanística, núm. 60, julio-diciembre, 2005.

 

MEDEIROS, Laís. Liberdade e sujeição, o sistema patriarcal sob o olhar de Flora Tristan (1803-1844). Revista Vernáculo, [S.l.], nov. 2020.

 

TORRÃO FILHO, Amilcar. As peregrinações de uma pária de Flora Tristan e a construção de uma feminista. Revista estudos feministas, v. 26, 2018.

2 comentários:

  1. Olá, Gabrielle. Parabéns pela pesquisa.
    Gostaria de saber como eram recebidos, pela sociedade da época, essas fontes produzidas pelas mulheres?

    Rodrigo Perles Dantas.

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    1. Ola, Rodrigo! Considerando a sociedade em que a autora tece a sua narrativa, e inserida em um contexto de extrema dominância masculina em todos os âmbitos sociais, Flora também sofre com o que hoje convencionamos chamar por machismo. Assim, as estruturas sociais do período, mesmo que a autora nao esteja na base social, ela ainda sofre em relação ao patriarcado e relação de dominação de estruturas pautadas na predominância de poder masculina. - Gabrielle Legnaghi de Almeida

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